Por Alexandre Aragão
“Na primeira noite, eles se aproximam,
colhem uma flor de nosso jardim.
e não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem,
pisam as flores, matam nosso cachorrinho,
e não dizemos nada.
Até que um dia, o mais frágil deles, entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua, e conhecendo nosso medo, arranca- nos a voz da garganta.
E porque não dissemos nada,
já não podemos dizer nada.”
(Vladimir Maiakoviski)
“Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu.
Como não sou judeu, não me incomodei.
No dia seguinte, vieram e levaram
meu outro vizinho que era comunista.
Como não sou comunista, não me incomodei .
No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho cristão.
Como não sou cristão, não me incomodei.
No quarto dia, vieram e me levaram;
já não havia mais ninguém para reclamar.”
Martin Niemöller
Na tarde do dia 25 de julho de 2010, foi assassinado pelas costas o adolescente Bruce Cristian, de 14 anos de idade, que estava na garupa da moto do seu pai, por uma bala disparada por um jovem policial militar do grupamento Ronda do Quarteirão, de Fortaleza – CE. O projétil penetrou a nuca do adolescente indefeso, saindo pelo olho esquerdo, causando-lhe morte imediata. Os jornais da cidade noticiaram o fato dizendo que aquele disparo preciso e mortífero havia sido efetuado por engano (sic!).
No mês de abril deste mesmo ano pude presenciar a ameaça de outro jovem policial do Ronda do Quarteirão a um comerciante em seu estabelecimento no centro da cidade, num shopping popular nas imediações da Praça José de Alencar, quando o micro-empresário solicitava ao militar a gentileza de não se apoiar no balcão de atendimento de clientes que se posiciona para a rua, pedindo-lhe educadamente o favor de afastar-se um pouco mais para o lado. Recebeu do policial a ameaça taxativa para parar com aquela “provocação”, senão poderia acontecer algo pior. E o policial não se retirou da frente do balcão.
São diversos relatos da violência policial contra os cidadãos fortalezenses e brasileiros de uma forma geral, como o recente da professora da UFC, repassada para vários e-mails.
O covarde assassinato de Bruce Cristian é o ápice de uma brutal situação que requer de nós cidadãos e cidadãs não apenas a indignação, mas uma reflexão madura e uma tomada de posição que vise a mudar esse “estado de coisas”. Somente uma articulação coletiva pode transformar o “estado de coisas” pela via da mobilização política.
Como nos lembra Espinosa, indignar-se é demonstrar concretamente o total repúdio a alguém que comete um mal a um nosso semelhante. Consequentemente, a indignação implica uma ação coletiva que seja capaz de corrigir o mal em sua raiz, construindo um novo ambiente que seja propício e esteja comprometido com a prática do bem para com a coletividade.
No filme Tropa de Elite (2007), dirigido por José Padilha, coloca-se em pauta a questão da relação policial com os cidadãos do Rio de Janeiro, mais precisamente os moradores das favelas, a partir do olhar do capitão Nascimento, integrante do BOPE – Batalhão de Operações Especiais. Parece-me interessante relembrar algumas passagens do filme, na medida em que revela algumas semelhanças com o momento em que vivemos em Fortaleza.
Para o capitão Nascimento, a relação com as favelas é “uma guerra”, e no filme os policiais do BOPE se autodefinem como guerreiros. “O BOPE é outra polícia, policiais convencionais não são treinados pra guerra”. A marca, a farda preta, o processo de treinamento fazem deles policiais especiais, um outro sistema policial. A auto-imagem apresentada ao público é de que no BOPE não existem policiais corruptos, existem “super-homens”, idealistas, corretos, cumpridores dos seus deveres, que estão acima do bem e do mal, podendo usar de todos os artifícios para derrubar o inimigo (o morador da favela), legitimados pelo estado de guerra permanente, como por exemplo no caso da tortura que praticam contra um estudante na busca do traficante “Baiano”.
Entre um de seus gritos de guerra afirmam: “Faço coisas que assustam o Satanás”, ou então mostrando qual é o objetivo do BOPE: “Entrar na favela e deixar corpos no chão”. Na narrativa do capitão Nascimento, o BOPE aparece como uma espécie de consciência moral da sociedade, ao fazerem “justiça”, legitimada pela instituição, eliminando o inimigo. “Missão dada, é missão cumprida”, custe o que custar, é o lema do batalhão.
Por outro lado, Michel Foucault em seus estudos sobre o biopoder apresenta muitos elementos importantes para nossa reflexão neste momento em que o adolescente Bruce Cristian foi assassinado.
Na sua obra Em Defesa da Sociedade, ele trata da temática do nascimento do racismo de Estado, na tentativa de situar a questão não apenas do ponto de vista de um racismo étnico, mas de “um racismo tipo evolucionista, o racismo biológico”, ou como “racismo social” que presenciamos na contemporaneidade, que poderá servir de alicerce teórico para nós ao refletirmos um pouco sobre o micropoder do policial do Ronda do Quarteirão que efetuou o disparo assassino.
Foucault afirma que primeiramente o racismo vai se desenvolver com a colonização européia, sobretudo nas terras descobertas da América e da África, que acarretou um genocídio colonizador. O extermínio das populações indígenas nas terras brasileiras, como também o sistema escravista de povos africanos são exemplos históricos clássicos do que foi capaz a colonização branca européia. A ideologia racista foi o meio de introduzir no domínio da vida “o poder de definir o que deve viver e o que deve morrer”, uma maneira de defasar no interior da população uns grupos em relação a outros. Essa é primeira função do racismo, seja ele de que espécie for: fragmentar, fazer censuras nesse contínuo biológico (ou social) a que se dirige o biopoder. Como conseqüência, para Foucault, o racismo implicaria uma concepção de que se você quiser viver, é preciso que você faça morrer, é preciso que você possa matar, típica dos estados de guerra.
Mas o racismo vai permitir também estabelecer, entre a minha vida e a morte do outro, um tipo de relação, além de uma relação militar ou guerreira de enfrentamento, do tipo biológico, ou social (como entendemos que ocorre na contemporaneidade), ou seja, quanto mais “espécies socialmente inferiores” tenderem a desaparecer, quanto mais indivíduos “anormais” forem eliminados, menos degenerados haverá em relação à espécie, mais eu, enquanto espécie, viverei, serei mais forte, mais poderei proliferar. A morte do outro não é simplesmente a minha vida, minha segurança pessoal, a morte do outro, numa perspectiva racista, é o que vai deixar a vida em geral mais sadia e mais pura. A morte do outro, na análise de Foucault, “é o fortalecimento da própria pessoa na medida em que ela é membro de uma raça ou de uma população (ou de uma classe), na medida em que se é elemento numa pluralidade unitária e viva”.
É a ideologia do racismo, segundo Foucault, que inspira o pensamento sobre a criminalidade. Ela foi pensada igualmente, em termos de mecanismos de biopoder, como tornar possível a condenação à morte de um criminoso ou o seu isolamento
Foucault nos lembra que, na medida em que o poder não está localizado exclusivamente no aparelho de Estado, nada mudará na sociedade se os mecanismos de poder que funcionam fora, abaixo e ao lado dos aparelhos de Estado a um nível muito mais elementar, cotidiano, das instituições intermediárias da sociedade e ao nível interpessoal, não forem modificados.
O assassinato de Bruce Cristian ganhou repercussão devido ao engano do policial em ter cometido a brutal violência contra o adolescente à luz do dia e na via pública. Porque se tal fato houvesse ocorrido às escuras ou na favela, como alguns relatos anônimos denunciam, o “estado de coisas” estaria continuando calmamente a sua violência cotidiana.
Se a sociedade civil organizada não ficasse sabendo da trágica e violenta morte de Bruce Cristian, não pecaria. Mas agora que sabe, não pode se omitir, caso não queira ser cúmplice dessa covardia.