sexta-feira, 6 de agosto de 2010

TÁ LÁ MAIS UM CORPO ESTENDIDO NO CHÃO

À LUZ DO DIA E NA VIA PÚBLICA

Por Alexandre Aragão


“Na primeira noite, eles se aproximam,

colhem uma flor de nosso jardim.

e não dizemos nada.

Na segunda noite, já não se escondem,

pisam as flores, matam nosso cachorrinho,

e não dizemos nada.

Até que um dia, o mais frágil deles, entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua, e conhecendo nosso medo, arranca- nos a voz da garganta.

E porque não dissemos nada,

já não podemos dizer nada.”


(Vladimir Maiakoviski)



“Um dia vieram e levaram meu vizinho que era judeu.

Como não sou judeu, não me incomodei.


No dia seguinte, vieram e levaram

meu outro vizinho que era comunista.

Como não sou comunista, não me incomodei .

No terceiro dia vieram e levaram meu vizinho cristão.

Como não sou cristão, não me incomodei.


No quarto dia, vieram e me levaram;

já não havia mais ninguém para reclamar.”


Martin Niemöller



Na tarde do dia 25 de julho de 2010, foi assassinado pelas costas o adolescente Bruce Cristian, de 14 anos de idade, que estava na garupa da moto do seu pai, por uma bala disparada por um jovem policial militar do grupamento Ronda do Quarteirão, de Fortaleza – CE. O projétil penetrou a nuca do adolescente indefeso, saindo pelo olho esquerdo, causando-lhe morte imediata. Os jornais da cidade noticiaram o fato dizendo que aquele disparo preciso e mortífero havia sido efetuado por engano (sic!).

No mês de abril deste mesmo ano pude presenciar a ameaça de outro jovem policial do Ronda do Quarteirão a um comerciante em seu estabelecimento no centro da cidade, num shopping popular nas imediações da Praça José de Alencar, quando o micro-empresário solicitava ao militar a gentileza de não se apoiar no balcão de atendimento de clientes que se posiciona para a rua, pedindo-lhe educadamente o favor de afastar-se um pouco mais para o lado. Recebeu do policial a ameaça taxativa para parar com aquela “provocação”, senão poderia acontecer algo pior. E o policial não se retirou da frente do balcão.

São diversos relatos da violência policial contra os cidadãos fortalezenses e brasileiros de uma forma geral, como o recente da professora da UFC, repassada para vários e-mails.

O covarde assassinato de Bruce Cristian é o ápice de uma brutal situação que requer de nós cidadãos e cidadãs não apenas a indignação, mas uma reflexão madura e uma tomada de posição que vise a mudar esse “estado de coisas”. Somente uma articulação coletiva pode transformar o “estado de coisas” pela via da mobilização política.

Como nos lembra Espinosa, indignar-se é demonstrar concretamente o total repúdio a alguém que comete um mal a um nosso semelhante. Consequentemente, a indignação implica uma ação coletiva que seja capaz de corrigir o mal em sua raiz, construindo um novo ambiente que seja propício e esteja comprometido com a prática do bem para com a coletividade.

No filme Tropa de Elite (2007), dirigido por José Padilha, coloca-se em pauta a questão da relação policial com os cidadãos do Rio de Janeiro, mais precisamente os moradores das favelas, a partir do olhar do capitão Nascimento, integrante do BOPE – Batalhão de Operações Especiais. Parece-me interessante relembrar algumas passagens do filme, na medida em que revela algumas semelhanças com o momento em que vivemos em Fortaleza.

Para o capitão Nascimento, a relação com as favelas é “uma guerra”, e no filme os policiais do BOPE se autodefinem como guerreiros. “O BOPE é outra polícia, policiais convencionais não são treinados pra guerra”. A marca, a farda preta, o processo de treinamento fazem deles policiais especiais, um outro sistema policial. A auto-imagem apresentada ao público é de que no BOPE não existem policiais corruptos, existem “super-homens”, idealistas, corretos, cumpridores dos seus deveres, que estão acima do bem e do mal, podendo usar de todos os artifícios para derrubar o inimigo (o morador da favela), legitimados pelo estado de guerra permanente, como por exemplo no caso da tortura que praticam contra um estudante na busca do traficante “Baiano”.

Entre um de seus gritos de guerra afirmam: “Faço coisas que assustam o Satanás”, ou então mostrando qual é o objetivo do BOPE: “Entrar na favela e deixar corpos no chão”. Na narrativa do capitão Nascimento, o BOPE aparece como uma espécie de consciência moral da sociedade, ao fazerem “justiça”, legitimada pela instituição, eliminando o inimigo. “Missão dada, é missão cumprida”, custe o que custar, é o lema do batalhão.

Por outro lado, Michel Foucault em seus estudos sobre o biopoder apresenta muitos elementos importantes para nossa reflexão neste momento em que o adolescente Bruce Cristian foi assassinado.

Na sua obra Em Defesa da Sociedade, ele trata da temática do nascimento do racismo de Estado, na tentativa de situar a questão não apenas do ponto de vista de um racismo étnico, mas de “um racismo tipo evolucionista, o racismo biológico”, ou como “racismo social” que presenciamos na contemporaneidade, que poderá servir de alicerce teórico para nós ao refletirmos um pouco sobre o micropoder do policial do Ronda do Quarteirão que efetuou o disparo assassino.

Foucault afirma que primeiramente o racismo vai se desenvolver com a colonização européia, sobretudo nas terras descobertas da América e da África, que acarretou um genocídio colonizador. O extermínio das populações indígenas nas terras brasileiras, como também o sistema escravista de povos africanos são exemplos históricos clássicos do que foi capaz a colonização branca européia. A ideologia racista foi o meio de introduzir no domínio da vida “o poder de definir o que deve viver e o que deve morrer”, uma maneira de defasar no interior da população uns grupos em relação a outros. Essa é primeira função do racismo, seja ele de que espécie for: fragmentar, fazer censuras nesse contínuo biológico (ou social) a que se dirige o biopoder. Como conseqüência, para Foucault, o racismo implicaria uma concepção de que se você quiser viver, é preciso que você faça morrer, é preciso que você possa matar, típica dos estados de guerra.

Mas o racismo vai permitir também estabelecer, entre a minha vida e a morte do outro, um tipo de relação, além de uma relação militar ou guerreira de enfrentamento, do tipo biológico, ou social (como entendemos que ocorre na contemporaneidade), ou seja, quanto mais “espécies socialmente inferiores” tenderem a desaparecer, quanto mais indivíduos “anormais” forem eliminados, menos degenerados haverá em relação à espécie, mais eu, enquanto espécie, viverei, serei mais forte, mais poderei proliferar. A morte do outro não é simplesmente a minha vida, minha segurança pessoal, a morte do outro, numa perspectiva racista, é o que vai deixar a vida em geral mais sadia e mais pura. A morte do outro, na análise de Foucault, “é o fortalecimento da própria pessoa na medida em que ela é membro de uma raça ou de uma população (ou de uma classe), na medida em que se é elemento numa pluralidade unitária e viva”.

É a ideologia do racismo, segundo Foucault, que inspira o pensamento sobre a criminalidade. Ela foi pensada igualmente, em termos de mecanismos de biopoder, como tornar possível a condenação à morte de um criminoso ou o seu isolamento

Foucault nos lembra que, na medida em que o poder não está localizado exclusivamente no aparelho de Estado, nada mudará na sociedade se os mecanismos de poder que funcionam fora, abaixo e ao lado dos aparelhos de Estado a um nível muito mais elementar, cotidiano, das instituições intermediárias da sociedade e ao nível interpessoal, não forem modificados.

O assassinato de Bruce Cristian ganhou repercussão devido ao engano do policial em ter cometido a brutal violência contra o adolescente à luz do dia e na via pública. Porque se tal fato houvesse ocorrido às escuras ou na favela, como alguns relatos anônimos denunciam, o “estado de coisas” estaria continuando calmamente a sua violência cotidiana.

Se a sociedade civil organizada não ficasse sabendo da trágica e violenta morte de Bruce Cristian, não pecaria. Mas agora que sabe, não pode se omitir, caso não queira ser cúmplice dessa covardia.

domingo, 1 de agosto de 2010

Pacto de cidadania

  ELEIÇÕES Votar é importante. Mas não basta. Cabe ao cidadão participar da vida pública, acompanhando o desempenho de seus representantes eleitos democraticamente. Nisto consiste fazer valer o pacto político que deve ser selado a cada processo eleitoral
 
  Luís Henrique Marques
 
  As portas de um novo processo eleitoral, esperanças e desesperanças sobre os destinos da sociedade brasileira vêm à tona, uma vez que é a partir das ações políticas que mudanças estruturais de uma comunidade ou sociedade podem ocorrer. O equívoco é pensar que as mudanças cabem apenas àqueles que são eleitos como representantes da população para cargos nas diferentes esferas do poder público. "Para James Madison, um dos grandes intérpretes das instituições políticas norte-americanas quando da implantação de sua democracia, a primeira condição para que uma nação seja democrática é que tenha uma sociedade capaz de criar um governo e, ao mesmo tempo, seja capaz de controlá-lo", afirma o especialista em democracia participativa, Alexandre Aragão.
  Com efeito, não basta o voto. Ele é apenas o primeiro passo de um processo contínuo que, num ambiente democrático, implica a conquista sempre maior da liberdade e da justiça social. Por isso, para Aragão, "a liberdade e a justiça social não são uma propriedade adquirida de uma vez por todas". "Elas foram plantadas no solo sociopolítico que deve ser fertilizado, diariamente, por ações de um público sempre mais instruído e articulado politicamente, senão secará e definhará", completa ele. 
  Em outras palavras, segundo o especialista, cabe ao cidadão acompanhar sempre com opiniões, sugestões, cobranças, aquilo que seus representantes no poder público estão fazendo ou deixando de fazer no que diz respeito à atenção aos direitos civis. E isso deve acontecer durante todo o período em que esses representantes estiverem ocupando os cargos públicos para os quais foram eleitos. Não apenas às vésperas de um processo eleitoral.
  De acordo com Sérgio Prévidi, presidente nacional do Movimento Político pela Unidade (MPpU), ligado ao Movimento dos Focolares, esse compromisso entre o cidadão e o seu representante eleito - o chamado pacto político - exige, quando do processo eleitoral, que se estabeleça um diálogo inicial entre ambos. "Assim sendo, o candidato apresenta suas propostas, dialoga com seus eleitores, ouve deles as suas necessidades, discute-as e, por fim, se estabelece um pacto entre as propostas do candidato e as reivindicações dos eleitores", explica Prévidi. 
  "No diálogo, se estabelece uma pauta mínima que o candidato se compromete em realizar e o eleitor em ajudar na realização, dentro das suas possibilidades", conclui. Uma postura eticamente definida, lealdade com os companheiros de partido e coligação, a manutenção de uma polêmica serena e digna - especialmente com os adversários - estão, segundo Prévidi, entre as outras exigências que devem ser observadas nesse pacto.
  Alexandre Aragão ressalta também que o candidato, uma vez eleito, deve manter a continuidade dos encontros com grupos organizados para os quais deve prestar contas de tudo o que está realizando. Segundo ele, esta é uma forma de o eleito "submeter-se ao acompanhamento por parte do eleitorado, permitindo-lhe oferecer a sua colaboração permanente de estímulo, de crítica, de controle, de corresponsabilidade e de coparticipação, a fim de atuar ou modificar os programas previstos". 
  Para o especialista, essa iniciativa vai ao encontro de um princípio democrático que, embora originalmente liberal, atende uma legitimidade de todas as correntes políticas: a necessidade de "autonomia da sociedade civil em relação ao aparato do Estado". De fato, a maior participação do cidadão nos processos políticos, administrativos e legislativos o coloca numa posição de protagonista e não mais de refém em relação à coisa pública.
 
  Dificuldades históricas
  Referindo-se à nossa experiência histórica sobre participação política do cidadão, Aragão cita a primeira obra que narra a História do Brasil, escrita em 1627, pelo frei Vicente do Salvador. "Nenhum homem nessa terra é repúblico, nem zela ou trata do bem-comum, senão cada um do seu particular", escreveu o religioso. Para o especialista, "a ausência de um senso comum impedia que a terra fosse tratada como uma coisa que beneficiasse a todos os que nela habitavam", o que parece explicar a experiência "centrífuga" da formação do Estado brasileiro o que, por sua vez, gerou um Estado central e centralizador, responsável por ditar a formação política da nossa sociedade.
  Já ao fazer referência ao período inicial da nossa República, Aragão vale-se de outro autor - José Murilo de Carvalho - para argumentar que a visão política brasileira permanecia marcada por essa visão elitista a respeito da participação política. "A República brasileira foi proclamada em uma sociedade profundamente desigual e hierarquizada, e num momento de intensa especulação financeira causada pelas grandes emissões de dinheiro feitas pelo governo para atender as necessidades geradas pela abolição da escravidão", explica o especialista. "Neste contexto, não havia preocupação com o público, predominava uma mentalidade predatória, aliada a uma ausência de um sentimento de comunidade, de identidade coletiva de pertença a uma nação", completa.
  De lá para cá, essa postura de falta de compromisso com a coisa pública pouco avançou, não só como demonstram as constantes revelações de atos de corrupção, como também por uma recorrente postura de passividade de grande parte dos cidadãos brasileiros ante a ação da classe política. Sérgio Prévidi - que já foi prefeito no interior do Estado de São Paulo - chama a atenção para o outro lado da questão: o lado de quem é candidato e, depois, é eleito a um cargo público.
  "A dificuldade é que o candidato nem sempre é um político livre, isto é, dono de suas atuações", diz Prévidi. E explica: "Muitas vezes, ao assumir compromissos com os eleitores, ele assume também com outros setores cujos interesses são opostos aos que assume com seu eleitorado. Uma vez eleito, o candidato fica entre cumprir os compromissos com seus eleitores e o compromisso 'comercial ou financeiro' com empresas".
 
  Protagonismo e comunidade organizada
  Sérgio Prévidi, quando eleito, pôde vivenciar uma experiência significativa com relação a esse pacto político. Ele conta que um dos seus compromissos como candidato foi criar o Plano Diretor da sua cidade. Na ocasião, ele tinha dois caminhos: elaborá-lo com os técnicos e empresários do ramo imobiliário ou com a participação de representantes da comunidade, da sociedade civil organizada, além de técnicos e empresários. "Optei por escrever o Plano Diretor com todos os segmentos da sociedade e com o acompanhamento técnico de especialistas; assim, o grupo foi constituído por aproximadamente 130 representantes", conta Prévidi para quem, o resultado final contemplou o interesse de toda a sociedade local.
  No entanto, em razão da herança histórica de pouco espaço dado à participação do cidadão nas questões políticas de administração pública no Brasil, a esse mesmo cidadão é pedido, no momento atual, uma mudança de postura que sai do imobilismo para o protagonismo. Edelvira José de Godói, de 71 anos, é um exemplo nesse sentido. Aposentada e residente em Porto Alegre (RS), ela mantém um contato frequente com políticos de diferentes esferas do poder (em nível municipal, estadual e federal). Além disso, Edelvira mantém-se informada dos passos de seus representantes, especial-mente pela cobertura da imprensa e participa, com frequência, das sessões da Câmara e da Assembleia Legislativa. Dos políticos com quem mantém contato estreito, Edelvira cobra posições e explicações; para eles, manifesta suas opiniões e oferece sugestões. 
  Ela conta que, em certa ocasião, visitou um vereador e argumentou ser favorável a um projeto de lei que propunha que o teste de glaucoma fosse feito em cada criança que nascesse no município. Mais tarde, durante a sessão da Câmara, embora o projeto fosse iniciativa de um representante da oposição, o vereador insistiu em pedir a palavra no plenário da Câmara e defendeu a proposta para surpresa de todos. Essa experiência influenciou também a própria forma como ela passou a encarar a política, aprendendo a ouvir e considerar a posição de políticos de todos os partidos.
  O exemplo de Edelvira, no entanto, não é tão isolado como pode parecer. Ela integra o Movimento Político pela Unidade e, com outros membros do grupo em Porto Alegre, realiza essa mesma experiência do pacto político coletiva-mente. Edelvira diz acreditar que a atmosfera na Câmara de sua cidade sofreu transformações a partir do momento em que ela e o grupo passaram a manter um relacionamento harmonioso com os vereadores. Um sintoma disso é que a relação entre os próprios vereadores, independentemente do partido político, transformou-se - ao menos em parte - numa relação mais cordial e honesta, avalia. 
  De fato, é um consenso entre especialistas que, além da iniciativa pessoal, os cidadãos precisam aprender a organizar-se e agir coletivamente para fazer valer o pacto político selado com seus representantes no poder. Esse empreendimento significa, antes de tudo, resgatar ou mesmo criar o próprio sentido de comunidade, pelo qual, de acordo com Alexandre Aragão, reconhecemos o semelhante "como ser legítimo com quem se pode e se deve estabelecer uma convivência democrática na construção de um novo mundo solidário e de cidadania plena para todos os seres humanos". Aragão salienta ainda que esse empreendimento implica o fato de ser o povo a reinar sobre o mundo político. "A política é eminentemente uma ação ética e coletiva", diz ele. Mas adverte sobre a experiência brasileira: "Esta lição ainda não aprendemos inteiramente".

Por: Luís Henrique Marques
fonte:http://www.cidadenova.org.br/RevistaCidadenova/ArtigoDetalhe.aspx?id=3938
Julho de 2010