quinta-feira, 16 de junho de 2011

O Estado da Palestina já!


EMIR MOURAD


O fato de Israel ter vencido guerras não o faz regulador de normas internacionais nem exime o país das infrações cometidas perante as leis



A questão fundamental para a solução do conflito entre palestinos e israelenses é reconhecer que os países-membros da ONU possuem direitos e deveres que regulam a convivência civilizada entre nações, Estados, governos e povos.
Israel, dentre diversas resoluções do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral, acatou, até hoje, uma só resolução: a que aceitou Israel como membro da ONU!
A Palestina existe de fato antes de Israel ser criado em maio de 1948: uma cultura milenar, um povo organizado na cidade e no campo, em maioria árabe muçulmana e cristã, com minoria judaica, todos pertencentes à sociedade palestina, com instituições sociais, industriais, educacionais, faltando só o reconhecimento de direito para estabelecer seu Estado independente. O estabelecimento do Estado da Palestina é questão de direito! 
Vez ou outra nos deparamos com opiniões "desinformadas" sobre a demografia da época do mandato britânico sobre a Palestina, tais como "o território que a ONU destinou aos judeus já continha maciça maioria judaica".
Nos dados da ONU consta que, em dez dos 16 subdistritos administrativos, a população palestina perfazia mais de 82% do total da população. A Comissão de Inquérito Britânico-Americana, em 1945 e 1946, apresentou relatório com os dados de 1,269 milhão (67,6%) de árabes palestinos e 608 mil judeus residentes dentro das fronteiras do mandato da Palestina.
Sobre as guerras ocorridas em 1948, 1967 e 1973, todas as resoluções da ONU se referem às ações da "potência ocupante", Israel, e à ilegalidade de ocupar, colonizar e anexar territórios pela força militar.
Além da responsabilidade histórica de Israel pela expulsão dos refugiados palestinos.
Quanto aos judeus que foram expulsos de países árabes, eles obtiveram a cidadania israelense e deixaram de ostentar o direito de reivindicar qualquer status de refugiados, diferentemente dos refugiados palestinos, que hoje somam quase 5 milhões e são reconhecidos como refugiados segundo o estatuto da ONU e o direito internacional.
O conflito tem proporções internacionais, já que foi criado pela própria ONU e pelas intervenções de várias potências, em decorrência de seus interesses econômicos na região do Oriente Médio.
O fato de Israel ter vencido guerras não o faz regulador de normas e leis internacionais nem o exime de infrações cometidas perante a lei! 
Em julho de 2004, a Corte Internacional de Justiça proferiu uma sentença, por 14 votos a um, declarando ilegal e pedindo a demolição do muro que Israel construiu nos territórios ocupados.
A representante do Brasil na ONU, embaixadora Maria Viotti, em seu relato sobre a questão palestina, declarou, em 21 de abril de 2011: "As atividades de assentamento na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental são ilegais e um obstáculo à paz".
Os palestinos, em setembro próximo, vão pedir que o Estado da Palestina seja reconhecido como membro das Nações Unidas, tal como Israel o foi em 1949. Se Israel continuar negando esse direito aos palestinos, estará negando a razão de sua própria existência!


EMIR MOURAD, engenheiro civil, é diretor da Federação Árabe Palestina do Brasil.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


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TENDÊNCIAS/DEBATES
Relevante e urgente 


RANDOLFE RODRIGUES

Devemos evitar que o sistema de tripartição de Poderes se submeta ao constrangimento de decidir sobre fatos já consumados pelo Executivo


Nossa Constituição é sem dúvida o texto mais avançado de nossa história: ela restaurou os direitos civis, o equilíbrio e a independência entre os Poderes, ampliando os espaços institucionais de participação popular e introduziu no Brasil as bases para a construção de um Estado de bem-estar.
Entretanto, também instituiu, em seu artigo 62, a figura das medidas provisórias, inspirada nos "decreti-legge" da Constituição italiana de 1947, em que se estabelecia a sua adoção em casos extraordinários de necessidade e urgência.
Destaque-se que, na Itália, o sistema de governo é o parlamentar, que prevê que a não aprovação das medidas provisórias poderia acarretar a responsabilização política do governo. No Brasil, vemos instaurada uma verdadeira "ditadura do Executivo".
Em 2001, o Congresso aprovou a emenda constitucional nº 32, que buscava disciplinar as sucessivas reedições. Até tal data, já tinham sido editadas e reeditadas 6.130 medidas provisórias, chegando ao absurdo de algumas delas levarem anos sem apreciação, convertendo-se em verdadeiros decretos-leis.
A emenda constitucional nº 32/ 2001 não foi suficiente para conter o ímpeto legiferante do Executivo.
De 2001 até 2010 foram editadas mais de 800 medidas provisórias.
Os governos de FHC e Lula pecaram na observância dos critérios constitucionais de relevância e urgência.
Os vícios e deformações das medidas provisórias se avolumam: ausência de pertinência temática; utilização para abertura de crédito extraordinário, que só poderia ser admitido para atender a despesas imprevisíveis e urgentes decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública.
Junte-se a isso o desrespeito à função do Senado como Casa revisora do processo legislativo, em função do pouco tempo para tramitação na Casa.
Esses vícios são derivados não somente do abuso do Executivo, acostumado a legislar pelo método mais fácil, mas também de um Legislativo submisso, habituado à passividade e pouco empenhado em defender suas republicanas prerrogativas; ou seja, o Parlamento é enfraquecido porque esse enfraquecimento é permitido pelos parlamentares.
No início desta legislatura foi apresentada a proposta de emenda constitucional nº 11/ 2011, que altera a tramitação das medidas provisórias. O senador Aécio Neves apresentou substitutivo, aprovado na CCJ, mantendo o atual prazo de 120 dias para apreciação, distribuindo-as de modo equânime entre a Câmara e o Senado, recuperando o papel deste como Casa revisora.
Insere ainda uma Comissão Mista Permanente, composta por 12 senadores e 12 deputados, que terá o prazo de dez dias para o juízo de admissibilidade, recuperando assim a prerrogativa constitucional do Congresso na apreciação da relevância e urgência e evitando que o nosso sistema de tripartição de Poderes tenha que se submeter ao constrangimento de decidir sobre fatos já consumados pelo Executivo.
A aprovação da PEC nº 11/2011 é inadiável e de fato relevante e urgente para que seja restabelecido o nosso sistema de separação de Poderes, assim como restabelecido o poder do Congresso brasileiro, que deixará de ser um simples cartório das decisões vindas do Executivo.


RANDOLFE RODRIGUES é senador pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) do Amapá.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

segunda-feira, 13 de junho de 2011

A LUTA PELA CIDADANIA

Alexandre Aragão


A luta pela cidadania se dá no dia a dia, no assumir a própria história e com essa consciência ir-se em busca da efetivação de liberdades e direitos de igualdade. A cidadania e as liberdades substantivas não caem do céu.

Antes nós fomos a nação dos Navios Negreiros, que tão bem canta Castro Alves, daquele olhar preconceituoso, por parte dos brancos europeus que aqui chegaram, sobre a não existência da alma espiritual nos humanos negros e indígenas que fundaram nossa nação.
Hoje somos uma nação em processo de elaboração de sua democracia, que desenvolveu o Programa Bolsa Família como um resultado da leitura de nossa história, pela constatação da necessidade absoluta de uma política redistributiva de renda, que começou a ser implantada pela chegada ao poder de um grupamento vindo das bases sindicais de nosso país. Isso foi resultado da luta política possível e contínua.

Logicamente há várias formas de percebermos um copo com água até a metade. Alguns o olharão como quase vazio; outros, ao contrário o olharão como quase cheio. Para que a definição do olhar se aproxime o mais possível da verdade sobre o copo, é preciso, por exemplo, saber se o movimento foi de esvaziamento ou de enchimento. Com essa informação, poder-se-á compreender melhor o movimento histórico que incidiu sobre aquele copo com água até a metade.

O recente comunicado do IPEA, de número 92, em 19 de maio, debruça-se sobre a temática da equidade fiscal no Brasil, com seus impactos distributivos da tributação e do gasto social.

Como se sabe, existem pelo menos duas modalidades de impostos pagos pelos cidadãos brasileiros: impostos diretos, que recaem sobre a renda, e impostos indiretos, que recaem sobre o consumo.

Segundo o estudo, o sistema tributário brasileiro exerce um peso excessivo sobre as camadas mais pobres e intermediárias de renda, que se deve especialmente dos impostos indiretos sobre o consumo (ICMS, por exemplo), pois tanto o rico como o pobre pagam as mesmas alíquotas de impostos, caracterizando a regressividade tributária, contrariamente o que ocorre com o imposto sobre a renda que é progressivo: quem tem mais paga mais.

Afirma o estudo que nos 10% mais pobres, a regressividade da carga tributária atinge cerca de 30% de sua renda total, enquanto nos 10% mais ricos atinge somente 12% de sua renda total. Que injustiça, não?

A partir de 2003, começa a ocorrer um fenômeno novo na política distributiva do País.

O Gasto Social Progressivo procurou corrigir esse desequilíbrio regressivo, não mediante uma reforma tributária (que politicamente é muito difícil de acontecer no momento, dada a correlação de forças políticas), mas a partir da implantação de políticas públicas de transferência de renda, como também com o direcionamento dos gastos com saúde e educação para as camadas mais populares, por exemplo.

Os programas de transferências de renda apresentam-se como necessários também por outra razão. Pelo fato de os auxílios e seguros-desemprego serem benefícios que se efetivam em razão da inserção formal no mercado de trabalho. Como as pessoas mais pobres de nossa população convivem com precárias relações trabalhistas, seja pela informalidade, pela exploração patronal ou pelo desemprego (que na época FHC, anterior a 2003, atingiu taxas históricas), acarretava para elas uma ausência de proteção social.
O Programa Bolsa Família atinge atualmente cerca de 13 milhões de famílias. Segundo o estudo do IPEA, 80% dos recursos transferidos por esse programa são apropriados pelos 40% mais pobres da população do nosso país, cuja renda monetária familiar mensal per capita é de R$ 152,08, em valores de janeiro de 2009 (época em que se concluiu a pesquisa). Com relação aos 10% mais pobres, o PBF atinge cerca de 20% de suas rendas monetárias.

Portanto, é através do perfil redistributivo do gasto social brasileiro, a partir de 2003, que se está podendo contrabalancear a regressividade da tributação indireta nas camadas mais pobres e intermediárias de renda, mediante a destinação de recursos maiores das políticas sociais para estas populações.

Em 2009, conforme o estudo, observou-se que a transferência média de recursos públicos às famílias foi mais que proporcional à incidência tributária média, demonstrando a pró-atividade das políticas sociais, que não apenas buscam compensar a injustiça dos impostos no Brasil, mas que transformaram o gasto social em importante equalizador da distribuição dos recursos.

Essa perspectiva introduz novos olhares sobre como a reorganização possível do Estado (e não do Mercado) em operar políticas públicas é capaz de enfrentar obstáculos, antes dados como absolutos, no rumo à consolidação dos direitos sociais e constitucionais.

Logicamente esse debate nós não vamos encontrar na mídia dominante, que procura tratar tudo com a máxima superficialidade e parcialidade. Mas cabe a nós, que nos pretendemos olhar além da superfície, irmos em busca dessas leituras.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

CRISE DE RESPONSABILIDADE

Alexandre Aragão
A crise financeira no centro capitalismo mundial, em 2008; as manifestações de rua por democracia, cidadania, distribuição de renda e em defesa do trabalho na Europa; o tsunami, com o desastre nuclear do Japão; o massacre de Realengo, no qual crianças indefesas de uma escola pública do Rio de Janeiro foram barbaramente assassinadas enquanto assistiam às aulas, são acontecimentos que ocorreram no Ocidente, numa sequência temporal muito próxima, demarcando o fim da primeira e o início da segunda década do século XXI, requerendo de todos nós uma atenção mais sensível e comprometida, num debate intenso e consequente, na busca de procurar sentir as motivações profundas promotoras de tais eventos, com o objetivo de produzirmos pensamentos e atitudes capazes de responder ao que tais fenômenos estão a nos reclamar enquanto civilização contemporânea.

Existiria alguma relação entre aqueles acontecimentos? No tempo moderno, a Academia surge como locus da produção do pensamento científico, templo da “nova religião”, apresentando-se assim como um espaço propício para tal reflexão. Entretanto, segundo o teólogo Leonardo Boff (2011), a Academia possui uma grande dívida social com os marginalizados do planeta, pois, em boa parte, as universidades representam macroaparelhos de reprodução da sociedade discricionária e fábricas para o funcionamento do sistema imperante, não obstante ser também um laboratório do pensamento contestatório e libertário. Para o autor, “ainda não houve um encontro profundo entre a universidade e a população que possibilitasse uma aliança entre a inteligência acadêmica e a experiência da miséria popular: são mundos que caminham paralelos”.

A “sociedade discricionária”, da qual fala Boff, é a nossa sociedade moderna. Um tipo de sociedade que substituiu a ordem comunitária tradicional, baseada numa economia agrícola e pastoril, pela nova ordem da produção tecnológica industrial, cujo objetivo é a maximização da eficiência e dos lucros privados.

A palavra de ordem da modernidade é o progresso, mediante a manipulação da natureza pelos instrumentos fabricados pelos seres humanos. A modernidade pensa a si mesma como um movimento progressivo. A finalidade do progresso moderno é aumentar a capacidade de fazer tudo aquilo o que os seres humanos possam querer que se faça (Bauman, 1997). Com isso, a modernidade determina uma inversão na lógica da
produção social: os meios são liberados dos fins. A liberação dos meios é o coração da modernidade, que condena o passado e a tradição ao “lixo” da história.

Primeiramente houve a substituição das forças naturais de produção – os músculos humanos e dos animais – pela manipulação das máquinas; em seguida, a segunda mudança se dá com a substituição dos cérebros humanos pela manipulação da inteligência artificial.

É uma verdadeira revolução cultural que afetou em cheio o espaço social, modificando-o completamente na medida em que dissolveu os vínculos dos grupos naturais, rompendo com as relações e proteções que as pessoas encontravam nesses grupos, produzindo a fragmentação do composto social em indivíduos isolados, desligados, movendo-se aleatoriamente sem os vínculos anteriores: a atomização humana em busca “inconsciente” de novas constelações relacionais (Bauman, ibid.).
 
Como já afirmava Marx (1982), na época em que as relações sociais alcançaram o mais alto grau de desenvolvimento, o indivíduo é isolado dos seus laços naturais, onde as diversas formas do conjunto social passaram a apresentar-se a ele como simples meio de realizar seus fins privados. Não mais uma necessidade interior à sua humanidade, mas exterior. Um isolamento que se dá dentro da sociedade.
 
Ora, indivíduos desvinculados de seus laços, “individualmente livres”,são mais fáceis de manipulação, palavra de ordem da modernidade. Tendo sido destacados de seus grupos naturais – que os fazia sentirem-se mais inteiros – os indivíduos atomizados foram facilmente acessíveis para as novas funções que lhes foram imputadas. Afinal, era preciso tornar os humanos aptos e dóceis para  tratamento tecnológico moderno, cuja centralidade é a produção pela produção, o progresso pelo progresso. Os humanos tornaram-se assim verdadeiros objetos tecnológicos: foram separados, analisados e depois sintetizados de várias outras maneiras.
 
Como lembra Weber (1985), o mundo enquanto invocado pela tecnologia é um mundo desencantado, um mundo sem sentido próprio, porque sem finalidade, sem intenção, sem propósito, sem destino. Louis Dumont (1986) assinala que a modernidade destitui o mundo de valores e cria o mundo das coisas, dos objetos, um mundo sem humanidade, no qual o ser humano, agora se considerando um deus soberano (como no caso do
assassino de Realengo), pode impor sua vontade pela ação tecnológica. Se alguma coisa pode ser feita pela ação tecnológica, por exemplo, uma usina nuclear próxima ao mar, como no Japão ou em Angra dos Reis, não existe nenhuma autoridade que tenha o direito de proibir seu acontecimento.
 
Nesse mundo, necessidades naturais são abominações. Por outro lado, os desejos, bastando estar apoiados em tecnologia – em recursos técnicos – tornam-se “direitos humanos” que nada pode questionar, nem se pode argumentar para eliminá-los. A tecnologia passa a ser uma crença, que não permite a descrição do mundo a não ser de forma tecnológica. Ela torna-se a sua própria legitimação. É um novo fundamentalismo. Este consiste na subordinação estrita de interações sociais muito distintas a um princípio único e monolítico de ordenação social, aplicado em última instância por um corpo exclusivo de detentores do poder.
 
Para a modernidade tecnológica, é proibido proibir. O mundo moderno da tecnologia é um mundo resistente à fixação, fluído, explosivo de oportunidades, sejam elas quais forem. Importante são os meios capazes de
produzir. Os estadunidenses podiam fabricar a bomba atômica, então a fabricaram; em seguida, podiam lançá-la em Hiroshima e Nagasaky, então a lançaram. Essa é a lógica da tecnologia, esse é o valor que dá suporte à civilização moderna: o poder sem fim. Um poder sem fim assim cria uma cultura-do-sem-limite-do-eu, afinal nada pode opor-se a ação tecnológica. Os humanos internalizam essa cultura-do-sem-limite-do-eu levando-os à exacerbação de comportamentos, guiados pela compulsão do consumo e pela
centralização dos indivíduos em si mesmos. Em outras palavras, pensar tecnologicamente significa pensar a partir de uma visão fragmentada, ego-ista, numa sucessão de resolução de problemas, sem vínculos relacionais, cada um exigindo técnicas separadas e corpos separados de conhecimento especializado. 
 
 Se o tratamento para um problema cardíaco pode afetar algum distúrbio hepático, deixa de ser uma questão do cardiologista, que se isenta de total responsabilidade, passando o cliente para outro especialista. A realidade é pensada não como um todo, mas como uma soma de partes, como divisão, como razão, como separação. Criou-se uma sociedade apartada, capaz de construir arranha-céus, mas incapaz de matar a fome de milhares que crianças que morrem anualmente pela desnutrição ou inanição. Na cultura-do-semlimite- do-eu não há o esforço para se perceber a ligação entre riqueza e pobreza, o vínculo entre solidão e violência, a interpenetração entre excessos e carências.

A cultura-sem-limite-do-eu moderno recusa-se a enxergar os sofrimentos humanos concretos que batem diariamente em sua fortaleza. Constrói carros blindados à prova das balas da realidade, continua alheando-se
da dor que habita o planeta. O individualismo moderno quer apenas a maximização da felicidade pessoal, independente das consequências que possa causar a outrem. É em cima dessa antropologia individualista que se constrói o conhecimento no mundo moderno. Mas qual sistema dá sustentação a essa cultura-sem-limite-do-eu? O sistema capitalista-sem-fim.

É um sistema que privatiza os ganhos e socializa as perdas, como vimos nos exemplos com os quais iniciamos nosso artigo. Em Fukushima, a tragédia nuclear produziu 25 mil mortos, pessoas que não foram consultadas, nem suas famílias, sobre a implantação daquela arma tecnológica em sua região. Por  outro lado, nos EUA, os criadores das notas promissórias “garantidoras” das hipotecas não sofreram as consequências de suas irresponsabilidades dos empréstimos predatórios, que jogaram milhares de famílias estadunidenses na miséria e boa parte do mundo ocidental na recessão, porque “os bancos eram grandes demais para falir”.

Atualmente estamos vendo essa cultura-sem-limite-do-eu romper a mais nova fronteira: o corpo humano. A investigação do DNA, com a rápida ampliação da capacidade de tecnologias de manipulação da vida biológica, significa, em termos culturais, a transformação do corpo na derradeira raiz, a partir da qual se abrem as portas para a engenharia genética e as tecnologias que permitem a intervenção nos processos de reprodução e de desenvolvimento dos organismos vivos e a sua modificação.

Tudo isto é acompanhado por uma enorme indefinição, um verdadeiro rol de “notas promissórias” em branco assinadas pela humanidade, sobre os reais benefícios para as pessoas comuns, uma vez que a penetração do capital privado no desenvolvimento tecnológico da ciência manipuladora da vida e de sua capacidade de “controlar” o destino humano levará a transformar a vida humana em mercadoria, além de colocar esse tipo de conhecimento como uma das formas mais importantes de capital (Santos, 2010).

A cultura-do-sem-limite-do-eu não se interroga em relação sobre o pouco conhecimento que possui em compreender a complexidade dos processos biológicos humanos e as consequências que essas manipulações podem ter sobre as pessoas, comunidades e o meio ambiente, gerando um hiato perigoso entre a crescente capacidade de intervenção e transformação genética mediante a inovação tecnológica e a reduzida compreensão dos processos que organizam a vida.

Além disso, sendo de curto prazo o tempo do capital financeiro, requerendo retornos imediatos – e muitas vezes não éticos, como se viu na recente crise de 2008 -, principalmente no cenário neoliberal de feroz competividade do mercado global, várias interrogações, de caráter ético, palpitam em relação ao avanço dessa nova fronteira financiada pelo capital privado, preocupações que vão desde a um possível regresso do eugenismo, como com preocupações com as consequências sanitárias, ambientais, sociais e econômicas destas práticas.

Para superar esse impasse, parece ser necessário à humanidade ir em busca de novas palavras que substituam progresso, domínio, separação, manipulação, reorientando o novo eixo de caminhada da ação humana em meio ao mundo.

Novas palavras que sejam capazes de imaginar uma nova configuração da estrutura das relações econômicas, sociais e políticas, as quais possam garantir uma maior e mais justa distribuição dos bens produzidos pela humanidade em seu conjunto, além de viabilizar o desenvolvimento da vida de forma sustentável e prudente, onde o desenvolvimento tecnológico seja submetido a amplos processos de participação das populações a serem afetadas em suas possíveis aplicações, para que se possam adotar politicas que não dependam exclusivamente da fome de retorno e lucro imediato do capital privado, mas que sejam resultado de um debate amplo, contínuo e intenso entre os diversos setores e grupos que compõem a humanidade em seu conjunto.
 
Porque a Ciência é um bem social, uma vez que cada descoberta é financiada indiretamente pelo trabalho das pessoas comuns. Portanto deve servir a todos e estar ao alcance de todos.
 
Falta à Ciência fortalecer seu componente humanista e democrático, comprometida emocionalmente com as pessoas, capaz de deixar de ser um instrumento de crescimento do patrimônio de uns poucos, para ser uma
ferramenta catalisadora para a felicidade da humanidade.
 
Falta à Ciência fortalecer o seu componente ético. A ética não será digna desse nome se ela não abraçar o futuro. É preciso ter o entendimento do futuro, a partir das lições do presente, e incluir esse entendimento na sua ordem do dia. Como o futuro não está determinado pelo determinismo mecanicista concebido pelos modernos, mas por uma complexidade que requer criatividade e participação dos diversos sujeitos envolvidos, assim a nova racionalidade deve falar mais de possibilidades do que de certezas. Falta à Ciência fortalecer seu componente relacional. A individualidade, emergente na modernidade, precisa ser compreendida como sendo componente do todo: o sujeito que emerge do todo continua fazendo parte do
todo.
 
Falta à Ciência articular unidade e diversidade. Como lembra Prigogine (2000), a Seta do Tempo é um elemento fundamental de unidade e diversidade. Inicialmente ela é um elemento comum ao nosso universo; por exemplo, cada um de nós envelhece do mesmo jeito: o Sol envelhece da mesma forma que cada astro no universo. O tempo talvez seja o que caracteriza essa estranha viagem na qual estamos envolvidos todos nós. Por outro lado, ele diferencia as coisas. Não há evolução em uma única direção, existem evoluções múltiplas. A realidade é somente uma das realizações do possível.

Importante lembrar que o ser humano tem duas grandes experiências. A primeira trata da repetição. Vemos o Sol aparecer todos os dias, vemos o movimento da Lua, os movimentos das marés, e essa ideia de repetição abriu às portas às leis clássicas da Ciência. Todavia, também temos uma segunda experiência: a criatividade, a experiência do novo, a experiência artística, a experiência literária. Portanto, fazemos parte de dois grandes projetos: o projeto da inteligibilidade da vida e o projeto da responsabilidade com o Outro. Esses projetos estão coligados. Assim, é preciso superar a fragmentação moderna e ver-nos incluídos e relacionados numa mesma viagem pelo tempo-espaço.
 
O determinismo era uma tentação para grandes filósofos e para grandes escritores, como Renè Descartes, para quem era necessário criar uma certeza laica que se opusesse a incerteza religiosa, que conduzia às guerras de religião, ao assassinato, ao sangue. Porém essa certeza moderna também obrigava a estabelecer o dualismo entre matéria e a vida. Mas a condição humana é a condição temporal. Dá-se no tempo-espaço e com o tempo-espaço. Essa condição não é propriedade de alguns poucos, pertence a todos os seres humanos. Como lembra Walter Benjamin, “a essência de alguma coisa aparece de verdade quando esta se encontra ameaçada de desaparecer”. Quem sabe pelas ameaças que se vêm manifestando repetidamente, é chegada a hora de pensarmos e agirmos seriamente para tornar real uma nova possibilidade da vida na Terra, que garanta a sustentabilidade e a felicidade para todos nós.