Alexandre Aragão
A crise financeira no centro capitalismo mundial, em 2008; as manifestações de rua por democracia, cidadania, distribuição de renda e em defesa do trabalho na Europa; o tsunami, com o desastre nuclear do Japão; o massacre de Realengo, no qual crianças indefesas de uma escola pública do Rio de Janeiro foram barbaramente assassinadas enquanto assistiam às aulas, são acontecimentos que ocorreram no Ocidente, numa sequência temporal muito próxima, demarcando o fim da primeira e o início da segunda década do século XXI, requerendo de todos nós uma atenção mais sensível e comprometida, num debate intenso e consequente, na busca de procurar sentir as motivações profundas promotoras de tais eventos, com o objetivo de produzirmos pensamentos e atitudes capazes de responder ao que tais fenômenos estão a nos reclamar enquanto civilização contemporânea.
Existiria alguma relação entre aqueles acontecimentos? No tempo moderno, a Academia surge como locus da produção do pensamento científico, templo da “nova religião”, apresentando-se assim como um espaço propício para tal reflexão. Entretanto, segundo o teólogo Leonardo Boff (2011), a Academia possui uma grande dívida social com os marginalizados do planeta, pois, em boa parte, as universidades representam macroaparelhos de reprodução da sociedade discricionária e fábricas para o funcionamento do sistema imperante, não obstante ser também um laboratório do pensamento contestatório e libertário. Para o autor, “ainda não houve um encontro profundo entre a universidade e a população que possibilitasse uma aliança entre a inteligência acadêmica e a experiência da miséria popular: são mundos que caminham paralelos”.
A “sociedade discricionária”, da qual fala Boff, é a nossa sociedade moderna. Um tipo de sociedade que substituiu a ordem comunitária tradicional, baseada numa economia agrícola e pastoril, pela nova ordem da produção tecnológica industrial, cujo objetivo é a maximização da eficiência e dos lucros privados.
A palavra de ordem da modernidade é o progresso, mediante a manipulação da natureza pelos instrumentos fabricados pelos seres humanos. A modernidade pensa a si mesma como um movimento progressivo. A finalidade do progresso moderno é aumentar a capacidade de fazer tudo aquilo o que os seres humanos possam querer que se faça (Bauman, 1997). Com isso, a modernidade determina uma inversão na lógica da
produção social: os meios são liberados dos fins. A liberação dos meios é o coração da modernidade, que condena o passado e a tradição ao “lixo” da história.
Primeiramente houve a substituição das forças naturais de produção – os músculos humanos e dos animais – pela manipulação das máquinas; em seguida, a segunda mudança se dá com a substituição dos cérebros humanos pela manipulação da inteligência artificial.
É uma verdadeira revolução cultural que afetou em cheio o espaço social, modificando-o completamente na medida em que dissolveu os vínculos dos grupos naturais, rompendo com as relações e proteções que as pessoas encontravam nesses grupos, produzindo a fragmentação do composto social em indivíduos isolados, desligados, movendo-se aleatoriamente sem os vínculos anteriores: a atomização humana em busca “inconsciente” de novas constelações relacionais (Bauman, ibid.).
Como já afirmava Marx (1982), na época em que as relações sociais alcançaram o mais alto grau de desenvolvimento, o indivíduo é isolado dos seus laços naturais, onde as diversas formas do conjunto social passaram a apresentar-se a ele como simples meio de realizar seus fins privados. Não mais uma necessidade interior à sua humanidade, mas exterior. Um isolamento que se dá dentro da sociedade.
Ora, indivíduos desvinculados de seus laços, “individualmente livres”,são mais fáceis de manipulação, palavra de ordem da modernidade. Tendo sido destacados de seus grupos naturais – que os fazia sentirem-se mais inteiros – os indivíduos atomizados foram facilmente acessíveis para as novas funções que lhes foram imputadas. Afinal, era preciso tornar os humanos aptos e dóceis para tratamento tecnológico moderno, cuja centralidade é a produção pela produção, o progresso pelo progresso. Os humanos tornaram-se assim verdadeiros objetos tecnológicos: foram separados, analisados e depois sintetizados de várias outras maneiras.
Como lembra Weber (1985), o mundo enquanto invocado pela tecnologia é um mundo desencantado, um mundo sem sentido próprio, porque sem finalidade, sem intenção, sem propósito, sem destino. Louis Dumont (1986) assinala que a modernidade destitui o mundo de valores e cria o mundo das coisas, dos objetos, um mundo sem humanidade, no qual o ser humano, agora se considerando um deus soberano (como no caso do
assassino de Realengo), pode impor sua vontade pela ação tecnológica. Se alguma coisa pode ser feita pela ação tecnológica, por exemplo, uma usina nuclear próxima ao mar, como no Japão ou em Angra dos Reis, não existe nenhuma autoridade que tenha o direito de proibir seu acontecimento.
Nesse mundo, necessidades naturais são abominações. Por outro lado, os desejos, bastando estar apoiados em tecnologia – em recursos técnicos – tornam-se “direitos humanos” que nada pode questionar, nem se pode argumentar para eliminá-los. A tecnologia passa a ser uma crença, que não permite a descrição do mundo a não ser de forma tecnológica. Ela torna-se a sua própria legitimação. É um novo fundamentalismo. Este consiste na subordinação estrita de interações sociais muito distintas a um princípio único e monolítico de ordenação social, aplicado em última instância por um corpo exclusivo de detentores do poder.
Para a modernidade tecnológica, é proibido proibir. O mundo moderno da tecnologia é um mundo resistente à fixação, fluído, explosivo de oportunidades, sejam elas quais forem. Importante são os meios capazes de
produzir. Os estadunidenses podiam fabricar a bomba atômica, então a fabricaram; em seguida, podiam lançá-la em Hiroshima e Nagasaky, então a lançaram. Essa é a lógica da tecnologia, esse é o valor que dá suporte à civilização moderna: o poder sem fim. Um poder sem fim assim cria uma cultura-do-sem-limite-do-eu, afinal nada pode opor-se a ação tecnológica. Os humanos internalizam essa cultura-do-sem-limite-do-eu levando-os à exacerbação de comportamentos, guiados pela compulsão do consumo e pela
centralização dos indivíduos em si mesmos. Em outras palavras, pensar tecnologicamente significa pensar a partir de uma visão fragmentada, ego-ista, numa sucessão de resolução de problemas, sem vínculos relacionais, cada um exigindo técnicas separadas e corpos separados de conhecimento especializado.
Se o tratamento para um problema cardíaco pode afetar algum distúrbio hepático, deixa de ser uma questão do cardiologista, que se isenta de total responsabilidade, passando o cliente para outro especialista. A realidade é pensada não como um todo, mas como uma soma de partes, como divisão, como razão, como separação. Criou-se uma sociedade apartada, capaz de construir arranha-céus, mas incapaz de matar a fome de milhares que crianças que morrem anualmente pela desnutrição ou inanição. Na cultura-do-semlimite- do-eu não há o esforço para se perceber a ligação entre riqueza e pobreza, o vínculo entre solidão e violência, a interpenetração entre excessos e carências.
A cultura-sem-limite-do-eu moderno recusa-se a enxergar os sofrimentos humanos concretos que batem diariamente em sua fortaleza. Constrói carros blindados à prova das balas da realidade, continua alheando-se
da dor que habita o planeta. O individualismo moderno quer apenas a maximização da felicidade pessoal, independente das consequências que possa causar a outrem. É em cima dessa antropologia individualista que se constrói o conhecimento no mundo moderno. Mas qual sistema dá sustentação a essa cultura-sem-limite-do-eu? O sistema capitalista-sem-fim.
É um sistema que privatiza os ganhos e socializa as perdas, como vimos nos exemplos com os quais iniciamos nosso artigo. Em Fukushima, a tragédia nuclear produziu 25 mil mortos, pessoas que não foram consultadas, nem suas famílias, sobre a implantação daquela arma tecnológica em sua região. Por outro lado, nos EUA, os criadores das notas promissórias “garantidoras” das hipotecas não sofreram as consequências de suas irresponsabilidades dos empréstimos predatórios, que jogaram milhares de famílias estadunidenses na miséria e boa parte do mundo ocidental na recessão, porque “os bancos eram grandes demais para falir”.
Atualmente estamos vendo essa cultura-sem-limite-do-eu romper a mais nova fronteira: o corpo humano. A investigação do DNA, com a rápida ampliação da capacidade de tecnologias de manipulação da vida biológica, significa, em termos culturais, a transformação do corpo na derradeira raiz, a partir da qual se abrem as portas para a engenharia genética e as tecnologias que permitem a intervenção nos processos de reprodução e de desenvolvimento dos organismos vivos e a sua modificação.
Tudo isto é acompanhado por uma enorme indefinição, um verdadeiro rol de “notas promissórias” em branco assinadas pela humanidade, sobre os reais benefícios para as pessoas comuns, uma vez que a penetração do capital privado no desenvolvimento tecnológico da ciência manipuladora da vida e de sua capacidade de “controlar” o destino humano levará a transformar a vida humana em mercadoria, além de colocar esse tipo de conhecimento como uma das formas mais importantes de capital (Santos, 2010).
A cultura-do-sem-limite-do-eu não se interroga em relação sobre o pouco conhecimento que possui em compreender a complexidade dos processos biológicos humanos e as consequências que essas manipulações podem ter sobre as pessoas, comunidades e o meio ambiente, gerando um hiato perigoso entre a crescente capacidade de intervenção e transformação genética mediante a inovação tecnológica e a reduzida compreensão dos processos que organizam a vida.
Além disso, sendo de curto prazo o tempo do capital financeiro, requerendo retornos imediatos – e muitas vezes não éticos, como se viu na recente crise de 2008 -, principalmente no cenário neoliberal de feroz competividade do mercado global, várias interrogações, de caráter ético, palpitam em relação ao avanço dessa nova fronteira financiada pelo capital privado, preocupações que vão desde a um possível regresso do eugenismo, como com preocupações com as consequências sanitárias, ambientais, sociais e econômicas destas práticas.
Para superar esse impasse, parece ser necessário à humanidade ir em busca de novas palavras que substituam progresso, domínio, separação, manipulação, reorientando o novo eixo de caminhada da ação humana em meio ao mundo.
Novas palavras que sejam capazes de imaginar uma nova configuração da estrutura das relações econômicas, sociais e políticas, as quais possam garantir uma maior e mais justa distribuição dos bens produzidos pela humanidade em seu conjunto, além de viabilizar o desenvolvimento da vida de forma sustentável e prudente, onde o desenvolvimento tecnológico seja submetido a amplos processos de participação das populações a serem afetadas em suas possíveis aplicações, para que se possam adotar politicas que não dependam exclusivamente da fome de retorno e lucro imediato do capital privado, mas que sejam resultado de um debate amplo, contínuo e intenso entre os diversos setores e grupos que compõem a humanidade em seu conjunto.
Porque a Ciência é um bem social, uma vez que cada descoberta é financiada indiretamente pelo trabalho das pessoas comuns. Portanto deve servir a todos e estar ao alcance de todos.
Falta à Ciência fortalecer seu componente humanista e democrático, comprometida emocionalmente com as pessoas, capaz de deixar de ser um instrumento de crescimento do patrimônio de uns poucos, para ser uma
ferramenta catalisadora para a felicidade da humanidade.
Falta à Ciência fortalecer o seu componente ético. A ética não será digna desse nome se ela não abraçar o futuro. É preciso ter o entendimento do futuro, a partir das lições do presente, e incluir esse entendimento na sua ordem do dia. Como o futuro não está determinado pelo determinismo mecanicista concebido pelos modernos, mas por uma complexidade que requer criatividade e participação dos diversos sujeitos envolvidos, assim a nova racionalidade deve falar mais de possibilidades do que de certezas. Falta à Ciência fortalecer seu componente relacional. A individualidade, emergente na modernidade, precisa ser compreendida como sendo componente do todo: o sujeito que emerge do todo continua fazendo parte do
todo.
Falta à Ciência articular unidade e diversidade. Como lembra Prigogine (2000), a Seta do Tempo é um elemento fundamental de unidade e diversidade. Inicialmente ela é um elemento comum ao nosso universo; por exemplo, cada um de nós envelhece do mesmo jeito: o Sol envelhece da mesma forma que cada astro no universo. O tempo talvez seja o que caracteriza essa estranha viagem na qual estamos envolvidos todos nós. Por outro lado, ele diferencia as coisas. Não há evolução em uma única direção, existem evoluções múltiplas. A realidade é somente uma das realizações do possível.
Importante lembrar que o ser humano tem duas grandes experiências. A primeira trata da repetição. Vemos o Sol aparecer todos os dias, vemos o movimento da Lua, os movimentos das marés, e essa ideia de repetição abriu às portas às leis clássicas da Ciência. Todavia, também temos uma segunda experiência: a criatividade, a experiência do novo, a experiência artística, a experiência literária. Portanto, fazemos parte de dois grandes projetos: o projeto da inteligibilidade da vida e o projeto da responsabilidade com o Outro. Esses projetos estão coligados. Assim, é preciso superar a fragmentação moderna e ver-nos incluídos e relacionados numa mesma viagem pelo tempo-espaço.
O determinismo era uma tentação para grandes filósofos e para grandes escritores, como Renè Descartes, para quem era necessário criar uma certeza laica que se opusesse a incerteza religiosa, que conduzia às guerras de religião, ao assassinato, ao sangue. Porém essa certeza moderna também obrigava a estabelecer o dualismo entre matéria e a vida. Mas a condição humana é a condição temporal. Dá-se no tempo-espaço e com o tempo-espaço. Essa condição não é propriedade de alguns poucos, pertence a todos os seres humanos. Como lembra Walter Benjamin, “a essência de alguma coisa aparece de verdade quando esta se encontra ameaçada de desaparecer”. Quem sabe pelas ameaças que se vêm manifestando repetidamente, é chegada a hora de pensarmos e agirmos seriamente para tornar real uma nova possibilidade da vida na Terra, que garanta a sustentabilidade e a felicidade para todos nós.