quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

É FÁCIL GOVERNAR O BRASIL


Alexandre Aragão



No seu discurso proferido em Salvador, no dia 29 de dezembro corrente, na cerimônia de entrega de moradias a cidadãos e cidadãs soteropolitanos, o Presidente Luís Inácio Lula da Silva fez uma afirmação contundente: “É fácil governar o Brasil”, desmistificando e desmascarando toda a onda de preconceitos e articulações produzidos por setores da elite conservadora brasileira que torciam nesses anos pelo desastre da administração de trabalhadores a frente do executivo federal.

A centralidade da afirmação do Presidente Lula alicerça-se, segundo seu pensamento, em dois pontos básicos. Primeiramente no fato de, ao ter alcançado o topo máximo da direção política do País, nunca haver esquecido suas origens, o agreste pernambucano de onde teve de emigrar para a capital paulista na busca de sobrevivência digna. O outro pilar de sustentação de sua ciência política foi o claro objetivo pelo qual se arvorou à Presidência da República: ser um legítimo e fiel representante da maioria do povo brasileiro e não de uma minoria que historicamente detém o poder econômico deste País.


O método adotado neste percurso pode ser resumido em poucas palavras: a articulação do crescimento econômico, do controle da inflação e da redução das desigualdades sociais com uma vigorosa e inovadora participação social na implementação de políticas públicas, buscando construir uma nova relação entre Estado e Sociedade, conferindo efetividade aos princípios da democracia participativa previstos na Constituição Federal de 1988. 

De fato, na primeira Mensagem enviada ao Congresso Nacional, o Presidente da República anunciou a participação social como método de governo. Em 1° de janeiro de 2003, ele redefiniu as atribuições da Secretaria-Geral da Presidência da República, que passou a ser responsável pelo diálogo do Governo com a sociedade civil. Coube à Secretaria-Geral coordenar a constituição de espaços e instrumentos participativos, bem como a formulação de conceitos e procedimentos que passaram a orientar os órgãos de Governo em sua interação com os movimentos sociais e entidades da sociedade civil.

Iniciou-se, então, uma mudança completa no modo de elaborar as políticas públicas e, consequentemente, na forma de implementá-las e avaliá-las. 

A partir de 2003, elas passaram a ser debatidas em conjunto com a sociedade civil nas conferências nacionais, nos conselhos, fóruns, mesas de diálogo e ouvidorias. As conferências adquiriram um caráter inovador, com a realização de etapas municipais e estaduais, culminando em uma etapa nacional, e permitiram aos mais variados segmentos da sociedade civil expressarem suas demandas e propostas. 

As 73 conferências nacionais realizadas entre 2003 e 2010 mobilizaram diretamente mais de cinco milhões de pessoas em inúmeros municípios brasileiros. Diversas políticas públicas foram objeto de debate, tais como: desenvolvimento, geração de emprego e renda, inclusão social, saúde, educação, meio ambiente, direitos das mulheres, igualdade racial, reforma agrária, juventude, direitos humanos, ciência e tecnologia, comunicação, diversidade sexual, democratização da cultura, reforma urbana e segurança pública, entre muitas outras.
  
Nestes oito anos, diversos conselhos foram criados, tais como: Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial, Conselho da Transparência Pública e Combate à Corrupção, Conselho Nacional de Combate à Discriminação, Conselho das Cidades, Conselho Nacional de Segurança Pública, Conselho Nacional de Juventude, Conselho Nacional de Economia Solidária, Conselho Nacional de Aquicultura e Pesca, entre outros. Muitos foram inteiramente reformulados e democratizados, por exemplo: Conselho Nacional dos Direitos do Idoso, Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência, Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável, Conselho Nacional de Saúde, Conselho Nacional do Meio Ambiente e Conselho Nacional de Recursos Hídricos, entre outros.


Segundo Paulo Freire, os condicionamentos culturais sobre os quais foi formado o Brasil forjaram uma sociedade colonial, fechada, escravocrata, reflexa, sem povo, antidemocrática, rigidamente autoritária. Nossa formação histórica não criou condições para que o nosso povo pudesse construir-se pelas próprias mãos, porque entre nós o que predominou foi o mutismo do homem, devido à sua não-participação na solução dos problemas comuns imposta pela elite governante. Para Freire, o que caracterizava a sociedade brasileira era sua condição pré-política.


Com Lula inaugura-se uma nova fase de nossa história: a da democracia participativa. O povo começa a ter voz em espaços públicos de deliberação política.


A participação política pode ser considerada como um instrumento de transformação social com potencial para educar, transferir poder e socializar os atores participantes. A participação política funciona como uma escola onde os cidadãos adquirem uma compreensão sobre o que os governos fazem, sobre o que os governos não podem fazer e sobre como eles, os cidadãos e cidadãs, podem apresentar seus interesses e demandas para os representantes públicos. Setores excluídos da população, frequentemente destituídos de poder, têm a oportunidade de participar diretamente da elaboração de propostas políticas que vão influenciar sobre seu futuro.


A participação dos cidadãos comuns nas decisões de governos é um momento ímpar, um divisor de águas na política brasileira. Essa é uma das grandes inovações do Governo Lula, uma herança da qual é preciso saber cuidar.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Compreendendo o Lulismo

Josênio Parente

As mais significativas produções das Ciências Sociais do século XX tratavam da construção de um Brasil moderno. Havia um projeto de Brasil capitalista e liberal-democrático no seio das elites intelectuais brasileiras. Mesmo os seguidores da segunda e da terceira Internacional comunistas não escaparam desse sonho.

            Getúlio Vargas buscou construir os atores modernos da cena: a burguesia e o proletariado. A reserva de mercado e o corporativismo impresso na CLT foram o ´fome zero´ dessa caminhada. Todos os governos posteriores contribuíram para esse fim: a modernidade brasileira. Mas foi com a redemocratização pós-1964 que se efetiva o liberalismo no Brasil. Jereissati, no Ceará, com a responsabilidade fiscal, antecipa essa arrancada. É o início efetivo, e parece irreversível, da nossa tardia revolução burguesa: um capitalismo auto-sustentável com uma burguesia e um mercado interno fortes.

            Cada presidente caminhou de forma decisiva nessa direção. Collor deu o pontapé inicial ao introduzir a competitividade na economia, quebrando o modelo de reserva de mercado. Itamar e FHC introduziram a moeda e a possibilidade de planejar com o plano Real. Estavam formados os fundamentos econômicos e sociais dessa revolução.

Os cidadãos, se sentindo livres e iguais, nesse ambiente de qualidade total via competitividade, não apenas na economia, mas nas relações profissionais, formaram as condições propícias para uma reforma política, um novo pacto civilizatório, devido ao estado de guerra civil no seio da sociedade civil advinda com a nova estruturação da sociedade pelo mercado. Nossa democracia, que na essência foi delegativa, não representa mais os novos atores sociais. Na nova lógica, o personalismo deve também ceder à racionalidade burguesa.

O desafio do governo Lula estava na política a fim de restabelecer o pacto civilizatório de uma sociedade de mercado. Ele aconteceu em três campos, nos costumes políticos, na consolidação da nova cidadania, e nas relações internacionais, trazendo novo padrão de relacionamento.
No plano da moral, o desafio de estabelecer a ética liberal democrática numa sociedade já rendida ao mercado, isto é, trazer a submissão do cidadão ao Estado, foi iniciado no verdadeiro debate político. O debate econômico e social era consensual, mas a ética tradicional, baseada no temor de Deus e na santidade das pessoas, perdia força para orientar as ações individuais. O Estado precisava ocupar esse espaço e punir de forma republicana quem os desafiasse. Patrimonialismo e nepotismo não são pecados numa sociedade tradicional, mas o é numa sociedade de mercado. O momento dos ´aloprados´ e das prisões exemplares da PF foi bastante didático no restabelecimento dessa moral burguesa. E o judiciário representou a expressão dessa nova ética, como os Fariseus em Roma. São os doutores da lei quem as interpreta e representa a vontade geral, a nova ética.

No plano da cidadania, as massas entraram novamente na política pelo consumo sem compreender a esperteza e a ganância dos tradicionais atores do mercado. Era consenso entre os liberais que a entrada das massas pelo sistema educacional garantiria um maior ajustamento entre a política e a sociedade, restabelecendo facilmente a ética. O resultado dessa nova cidadania, contudo, não foi o populismo, como na primeira vez em que as massas chegaram à política, nas décadas de 1950 e 1960, impulsionada pelo êxodo rural urbano, embora não tenha excluído de imediato o personalismo inerente à sociedade tradicional. Esse processo beneficiou o chamado lulismo.

A chegada das massas à política pela transferência de renda iniciada timidamente pelo governo FHC traz um complicador para as tradicionais elites políticas que tinham suas bases no clientelismo tradicional. A inclusão social, entretanto, não é um fenômeno nacional, pois a queda do muro de Berlim mudou o quadro das relações internacionais. O mito do império americano, guardião da liberdade, só se sustentava no cenário de fim de história: capitalismo contra socialismo. O mundo era mais complexo! Buscou-se um novo demônio, o mundo mulçumano no berço do petróleo, mas não durou uma década. A China, sim, a China poderá assumir esse papel de contraponto para o Ocidente decadente? Esse é o novo quadro da ordem mundial.

O Brasil assiste à resolução desse dilema não mais como expectador e encontra aí um espaço para ser um ator global mais efetivo. Com um mercado interno fortalecido e uma economia que atrai investidores globais, o governo Lula priorizou as relações Sul-sul, sem cortar as tradicionais relações da diplomacia brasileira com o Norte, historicamente mais rico. Os pontos polêmicos desse xadrez, como a relação com o Oriente Médio, sobretudo o Irã, e a rápida passagem pela defesa da democracia na América Central, no caso de Honduras, são conseqüências desse novo papel. O governo Lula se reconheceu uma liderança no mundo globalizado e o Brasil, inserido nessa conjugação de forças, se apresenta como emergente numa nova ordem mundial em processo.

O governo Lula termina seus oito anos de mandato batendo recorde de aprovação de governo e de prestígio pessoal. Ele tem um foco na esquerda, isto é, nos valores de igualdade, mas é o momento de consolidar uma revolução liberal democrática. A simbologia do processo é rica: primeiro trabalhador presidente da República e elege a primeira mulher. Está rodeado desses símbolos como o primeiro índio, na Bolívia, e o primeiro negro, nos Estados Unidos. Está inserido, portanto, num processo de transformação num mundo burguês em crise de liderança que busca novo ordenamento global.