quinta-feira, 25 de agosto de 2011

EM BUSCA DE UM CAMINHO





Alexandre Aragão

Pensei de colaborar, mesmo se de uma forma muito modesta, com o texto de Eric Hobsbawm, postado em nosso grupo digital, como forma de retribuir à generosa iniciativa do companheiro Luiz Alberto em compartilhar conosco da visão daquele autor sobre a problemática que nos envolve no tempo presente.

O artigo de Hobsbawm é provocador na medida em que ele mesmo denuncia o desconhecimento, por parte da humanidade, da gravidade e da duração da atual crise sistêmica, ao mesmo tempo em que não se sabe como superá-la nem como fazer: “todos estão como um cego que tenta sair do labirinto tateando as paredes com todo tipo de bastões, na esperança de encontrar o caminho da saída”.

Esta imagem me reporta a duas outras imagens não menos significativas.

A primeira, trata da passagem do livro de José Saramago, ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA, quando a única pessoa – uma mulher, que continuou vidente naquela multidão de cegos, vai em busca de alimentos para o seu grupo de amigos e, ao entrar no breu do porão de um armazém, acende um minúsculo fósforo e, com aquela maravilhosa e pequenina luz, pode enxergar os mantimentos e reparti-los com seus companheiros e companheiras. Não era uma preocupação apenas consigo que a movia, mas o sentido do outro, dos outros. E bastou apenas a luz de um frágil fósforo para iluminar o caminho.

A segunda imagem me transporta para a belíssima composição de Caetano Veloso, UM ÍNDIO, que em uma de suas estrofes exclama: “E aquilo que se revelará aos povos/ Surpreenderá a todos não por ser exótico/ Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto/ Quando terá sido o óbvio//”. Olhar para o índio: quem dera o Angelus Novus, de Benjamin, o pudesse fazer...

A busca de um sentido foi também o tema com que o pontífice Bento XVI desenvolveu seu discurso de acolhida à juventude para a Jornada Mundial, em Barajas, na Espanha: “Venho me encontrar com milhares de jovens, de todo o mundo, à procura da verdade que dê sentido genuíno à sua existência (...). Eles sabem que, sem Deus, seria difícil afrontar estes desafios e ser verdadeiramente felizes (...). Com Ele ao seu lado, terão luz para caminhar, razões para esperar e hão de motivar os seus generosos compromissos para a construção de uma sociedade onde se respeite a dignidade humana e uma efetiva fraternidade”.

O fósforo, a luz...

Ser humano é tomar a consciência de que possuímos o mesmo gérmen que nos faz húmus e nos denomina degermanus, ou seja, hermanos.  Quiçá, com a chama deste pequenino e óbvio fósforo, possamos encontrar um novo caminho para a vida em nossa sociedade local-global, que respeite, garanta e promova este princípio básico da democracia.

Hobsbawm lembra que um problema que pode unir a humanidade é a luta contra a crise do meio ambiente. Afinal, sem as fontes da vida natural, a humanidade não pode existir. Entretanto, é bom lembrar que o inverso também é verdadeiro: sem a vida humana, a natureza perde o seu sentido de ser, na medida em que a humanidade é a expressão consciente do ecossistema Vida.
Assim, é preciso cuidar do Húmus como um todo: de sua matéria e de seu espírito.

A crítica que o autor deflagra contra o socialismo já fora produzida por diversos pensadores. E a história nos ajuda na revisão da importância da produção desses pensamentos, principalmente daqueles que ocorreram, não após o falimento das experiências socialistas ditas reais, mas no momento em que elas se iniciavam, como é o caso de Theilard de Chardin.

Entre outras coisas, ele afirmava que na medida em que “os primeiros ensaios socialistas pareceram inclinar-se perigosamente para um regime ou um estado infra-humano de formigueiro ou cupinzeiro, não é o princípio mesmo de totalização que se equivoca, mas a maneira inadequada e incompleta com que é aplicado”.

Para ele, os humanos precisavam despertar para o sentido da solidariedade universal, fundada na sua comunidade profunda de natureza e de destino evolutivo. Não era a dureza ou o ódio apregoado pelo leninismo, mas uma nova forma de amor, ainda não experimentada pelo Homo, que faz prognosticar e que leva nas suas dobras a onda que cresce em torno de nós, daquilo que Chardin chamava de planetarização. Como já disse Noam Chomsky, sem laços de solidariedade, de simpatia e de preocupação com os outros, uma sociedade que se pretenda socialista é impensável.

Por outro lado, a crítica ao capitalismo se torna cada vez mais atual, na medida em que esse sistema econômico não consegue produzir o bem para a humanidade; pelo contrário, gera um apartheid social incapaz de garantir uma distribuição justa dos bens produzidos socialmente.

O brasileiro Milton Santos, por exemplo, assinalou que a globalização hegemônica atual é o ápice do processo de produção capitalista, caracterizado pela expansão-superação das fronteiras dos Estados nacionais, tornando-as porosas, envolvendo todas as dimensões da realidade humana: econômica, política e simbólica. A globalização não é apenas a existência desse novo sistema de técnicas. Ela é também a emergência de um mercado dito global, responsável peloessencial dos processos políticos atualmente eficazes. Os fatores que contribuem para explicar a arquitetura da globalização atual são: a unicidade da técnica, a convergência dos momentos, a cognoscibilidade do planeta e a existência de “um motor único na história”, representado pela mais-valia globalizada. Um mercado global utilizando esse sistema de técnicas avançadas resulta nessa globalização perversa. Isso poderia ser diferente se o seu uso político fosse outro. Esse, para o autor, parece ser o debate central.

Voltando a Hobsbawm, nota-se que o seu olhar parte da experiência britânica, da debandada do partido trabalhista, personificado em Tony Blair, para o lado neoliberal, adotando todos os procedimentos doutrinários dessa cartilha teológica, como ele denominou.

Seu correspondente no Brasil estava representado numa caricatura de social-democracia, cujo líder máximo, Fernando Henrique Cardoso, seguiu determinadamente o que aquele receituário apregoava, colocando, ao final do seu governo, o Brasil numa situação altamente vulnerável. Em dezembro de 2002, o quadro econômico brasileiro deixado por FHC era o seguinte: o dólar custava R$ 3,63 (três reais e sessenta e três centavos), registrando uma maxidesvalorização cambial desde a implantação do real da ordem de 327%; as reservas internacionais desabaram para o valor irrisório de US$ 27 bilhões, após uma onda de privatizações generalizadas, sendo necessário nessa época fazer um empréstimo emergencial ao FMI de US$ 30 bilhões; o salário mínimo alcançou nessa época o valor real de US$ 56, uma perda em torno de 37% desde a implantação do real como moeda nacional; o chamado Risco Brasil atingiu o índice de 2.436 pontos, a taxa de desemprego alcançava índices recordes (BANCO CENTRAL, 2009).

Imaginemos o que teria sido para o Brasil, e para o seu povo, enfrentar uma crise sistêmica do capitalismo global se não tivesse ocorrido mudanças dos rumos do governo, com a reorganização estratégica do Estado, mediante a posse de Lula em 2002?

Lembrando que, em 2003, coube ao Brasil, na pessoa do presidente Lula, ocupar presidência da Comissão Americana que estava para decidir a entrada do Brasil na ALCA. Fernando Henrique estava trabalhando diuturnamente para isso ocorrer; quem barrou a entrada do Brasil na ALCA foi justamente o novo governo que tomou posse.

Assim, qual era a tarefa histórica urgente que o novo governo precisaria assumir?

Implantar transformações capazes de reverter o quadro de instabilidade, alterando-o para um ambiente produtivo. Era preciso reduzir substancialmente a vulnerabilidade brasileira a choques advindos de fluxos de capitais estrangeiros e variação de preços; consolidar a estabilização da moeda que se encontrava sob ameaça real; acumular reservas internacionais e poupança interna, recuperar a credibilidade do país externamente, para somente assim pensar em crescimento, orientado por uma estratégia de longo prazo, com premissas tais como inclusão social e desconcentração de renda, com crescimento econômico e ambientalmente sustentável, buscando reduzir disparidades regionais, dinamizado pelo mercado de consumo de massas e fortalecimento da cidadania e da democracia. E isto não era uma tarefa do Mercado, mas do Estado democrático.

Foi necessário adotar ações que promovessem a inclusão social e a cidadania por meio de acesso à propriedade, a bens e serviços e à universalização de direitos, bem como a superação da marginalização, o combate às desigualdades, buscando uma resposta eficaz ao problema da construção de uma estratégia socialmente inclusiva e transformadora de desenvolvimento, promotora da redução das desigualdades sociais e regionais de forma sustentável.

Que resultados podem-se aferir com essa mudança de rumo?

Em 31/12/2008, o salário mínimo atingia a marca recorde histórica de US$270. A cotação do dólar nessa mesma época despencou para US$ 1,71 (menos da metade que em 2002). As reservas internacionais nesse período já atingiam o valor recorde histórico de US$ 206,8 bilhões. E o chamado Risco Brasil desabou para 224 pontos, caindo a 10% do valor de 2002 (BANCO CENTRAL, 2009).

Portanto, talvez fosse interessante para o Hobsbawn criticar não apenas a politica britânica, mas também conhecer o que outros países estão fazendo, como é o caso do Brasil, na tentativa de encontrar novos caminhos para a construção da sociedade.

Para concluir, gostaria de registrar as palavras do meu grande amigo Luigino Bruni, para quem não se pode fazer nenhuma experiência autenticamente intelectual se a teoria e os pensamentos que se compreendem e se escrevem não se transformam na vida de quem os elabora e os escreve. Se se quer contribuir para uma nova teoria da solidariedade humana, a coisa verdadeiramente importante, e também a mais decisiva, que se deve fazer é tornar-se dia após dia uma pessoa solidária em todos os contextos da vida. Não é possível escrever e falar de dom, de comunhão, de gratuidade, de solidariedade sem ser dom, comunhão, gratuidade e solidariedade. A vida é maior e precede todo conceito. E só a vida salva, verdadeiramente, a nós e os outros.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

segunda-feira, 18 de julho de 2011

NOTÍCIAS DE ANGOLA


DIVIOL RUFINO

Querido amigo Alexandre,

Estou na África, precisamente em Angola (Luanda). Amanhã parto para Moçambique, em missão de Paz, de revigoramento pessoal e de perdão dentro das comunidades eclesiais, também aqui em Angola.

Aqui em Angola faz parte da memória oral, que um grupo de pernambucanos, de origem holandesa, partiu de Recife em 31 de maio de 1640, invadiu Luanda, em Agosto de 1641 para capturar escravos para os Engenhos de cana de açúcar de Pernambuco, enviados pelo Sr. Johan Maurice, conde de Nassau. Seus homens fizeram um verdadeiro massacre que durou sete anos e deportaram milhares de angolanos.

 Ontem estive no museu da escravatura, onde há um registro de que mais de 4,5 milhões de pessoas foram arrancadas de suas vidas, de seus familiares, de seus reinos e foram sumariamente deportadas, dos quais 30% morreram lançados ao mar. As imagens e os relatos aqui expostos são aterradores (inéditos no Brasil).

Tenho aproveitado dessa minha presença para, em cada encontro, em cada celebração, em nome do meu povo pernambucano e brasileiro, pedir PERDÃO por este gesto monstruoso, bem como para AGRADECER por tudo o que os Angolanos deram de si para a construção do nosso Estado e do nosso País.

Nesses dias temos tido momentos fortíssimos de PERDÃO, experimentado como sendo a única força capaz de sanar as profundas feridas, ainda vivas, na tradição oral desse povo tão belo, tão digno, tão honrado, mas ao mesmo tempo tão martirizado e explorado, inclusive pelas guerras recentes.

Quando parti do Brasil, no início de junho, não imaginava minimamente o que Deus estava reservando pra mim nessa viagem que, acredito, será - aliás, já é - um marco em minha vida e na de tantas pessoas que tenho encontrado nesse percurso totalmente elaborado pela criatividade Dele, em cujas mãos me abandono.

Como tu sabes, a responsável pelo Movimento dos Focolares, em Angola, São Tomé e Príncipe, Moçambique (onde me encontro até o dia 22.07) e Zâmbia é Ana Maria Santanchè. Posso te assegurar que ela se tornou mesmo uma coisa só com esse povo: de italiana virou africana com os africanos, com seu sofrimento, com sua dor e, concretamente, faz de tudo para minorá-lo.

Sinto-me honrado em poder colocar-me à disposição para compartilhar com ela, e com as demais focolarinas que estão aqui há mais de 20 anos, oferecendo-se com todas as energias e criatividade para elevar as pessoas à sua mais alta dignidade de filhos e filhas de Deus.

O que tenho feito não é nem mesmo uma gota no oceano de sofrimento, de abandono, de descaso que essas nações sofrem em relação ao resto do mundo, que só pisa aqui para explorar suas riquezas naturais - que são muitas - e entorpecer suas mentes com falsas promessas, ou mesmo despejando drogas, álcool, seitas e até novelas brasileiras que invadiram as casas, quebrando um elo milenar que até então era forte, o senso de família.

Um grande país asiático, por exemplo, aceitou a proposta de “contribuir” para o desenvolvimento desses povos, sem impor contrapartida, contudo, seus produtos invadiram os mercados levando à quebradeira geral os empreendedores e o comércio local, pois ninguém consegue concorrer aos seus produtos; sem falar que as melhores e modernas rodovias que estão se fazendo por toda parte- além de não empregarem a mão de obra local, pois praticamente todos vêm do referido país, todas as estradas seguem numa presumível direção: às minas de diamantes que já saem em "malas blindadas" para lá.

Só pra te dizer um caso, em Luanda, nesse momento, com a chegada dos chineses, para a construção civil; dos italianos, que exploram petróleo; dos brasileiros, etc., um apartamento de dois quartos, no momento em Luanda, não sai por menos de US$ 7.000 o aluguel mensal. O povo foi literalmente empurrado para a periferia da periferia, sem água, esgoto ou saneamento básico, como nova forma de escravidão e de colonialismo disfarçado de cooperação, pois o povo não teve tempo de ser erguer, pois uma geração inteira ficou sem frequentar escolas e universidades por terem sido confinadas nas matas em luta armada.

Milhões de pessoas migraram de suas regiões por causa da guerra e do perigo das minas e nunca mais voltaram. Resultado: a capital que era mais protegida por ser a sede do governo, virou um caos e inchada, sem água nem luz para todos.

Portanto, amigo, o que tenho feito com as pessoas é ouvi-las, é deixar a dor fluir, sem alimentar ilusões, mas sem apagar a esperança, mesmo que tardia virá! Tenho mostrado a elas que precisam mantar aceso o sonho de liberdade, que eles são fortes, resistentes e que as guerras pelas quais passaram que esfacelou suas famílias e seus sonhos não teve, no ódio, a última palavra. Que eles estão vivos, não obstante tudo que passaram.

Hoje, visitando uma comunidade muçulmana, aqui em Maputo - Moçambique - um jovem usou uma expressão, dirigindo-se a outro que experimentava na cabeça uma espécie de solidéu que eles usam: "Amigo, Alá é quem te deu esta cabeça grande porque assim ele quis. Se ele a conserva até hoje é porque Ele quer assim, o importante é que a uses bem. Alá é grande!".

É nessa fé em Alá, bem como no Deus dos cristãos que essa gente encontra forças e esperança em dias melhores, talvez é por isso que suas liturgias são abundantes, seus cantos envolventes e emocionantes, suas preces vão junto com o balouçar dos seus corpos geralmente bem ornados de honra, de dignidade, de beleza.

Asseguro-te, estou marcado por tudo o que tenho vivido aqui. Tenho - agora- mais certeza: “será a beleza que salvará o mundo” e aqui é o que não falta! Esta beleza, escravagista algum conseguiu lhes arrancar.


segunda-feira, 11 de julho de 2011

CARPE DIEM


Alexandre Aragão
No dia 29 de junho passado, realizou-se em Brasília, integrando o Ciclo de Debates promovido pelo IPEA, um seminário intitulado QUE TRABALHO DOMÉSTICO QUEREMOS PARA O BRASIL DO SÉCULO XXI?

Até a década de 1970, as trabalhadoras domésticas eram desconsideradas como um grupo produtor de trabalho, ou seja, não faziam formalmente parte do Mercado, consequentemente não eram objeto de direitos trabalhistas e sociais. As leis “colonialistas” vigentes na ditadura militar até então as tornavam invisíveis.

Com o retorno do Brasil à democracia, a luta democrática retorna à cena política, e a Constituição de 1988 garantiu-lhes os seus primeiros direitos: salário mínimo, o 13º. salário, a licença maternidade. Mesmo assim, manteve-se o tratamento desigualàs trabalhadoras domésticas, deixando de estender a elas o mesmo rol de direitos assegurados aos demais trabalhadores brasileiros. O artigo 7º. da Carta Magna, produzido pelos constituintes eleitos no contexto político de 1986, por meio da inclusão de um parágrafo único, restringe direitos à categoria das trabalhadoras domésticas.

Vê-se assim brevemente, nessa seta de tempo, um desenrolar de correlação de forças que fazem desenvolver um processo de mudança de concepções, de comportamentos e, consequentemente, de cenários, a partir da redemocratização do país. As trabalhadoras domésticas estão na luta, como agentes sociais (na visão seniana) para tornarem-se visíveis e garantirem seu espaço-cidadão na Sociedade [e no Mercado]. O princípio da igualdade requerido por uma sociedade democrática implica a liberdade de luta pela conquista da cidadania, com a ampliação de direitos e a formalização de novas normatizações. Isto, na ditadura de 1970, para as trabalhadoras domésticas, talvez fosse muito difícil de imaginar; mas agora já é uma realidade possível.

Com esse fato pretendo continuar a pensar um pouco sobre a existência humana. Ela comporta pelo menos três tipos de modalidade: a realidade, a necessidade e a possibilidade. Segundo alguns autores contemporâneos, realidade e necessidade foram modalidades com as quais a filosofia e a ciência se preocuparam demasiadamente, negligenciando a dimensão da possibilidade.

Mas o que seria, então, o possível?

No momento em que negamos uma determinada realidade, indica que estamos querendo afirmar algo diferente, mesmo quando não sabemos exatamente o que é esse querer.

Como lembra Manfredo de Oliveira, o ser humano é aquele que pode levantar a questão da validade sobre a sua práxis, sobre aquilo que deveria ser e não é, e sobre aquilo que não é e deveria ser. A ética emerge nesse contexto, como reflexão crítica destinada a tematizar os critérios que permitam superar o mal para conquistar o bem à humanidade. Seu objetivo fundamental é estabelecer o marco no qual seja possível configurar o mundo humano enquanto espaço efetivo de liberdade e justiça para todos (OLIVEIRA, 2008).

Por um lado, ser livre é ser capaz de dizer não. É libertar-se da dependência interna - por exemplo, do instinto; e externa - por exemplo, de uma coação. Um ente é positivamente livre na medida em que possui a si mesmo e tem nessa relação consigo mesmo o fundamento do seu ser e do seu agir. No ser humano livre emerge a capacidade de controlar os impulsos em função de um fim mais alto, degrau entre a vontade natural e a vontade verdadeiramente livre.

Mas a liberdade não pode esgotar-se na esfera da arbitrariedade da vontade, do ponto de vista do indivíduo isolado em si mesmo, de uma subjetividade atomizada, onde o particular enquanto particular é o essencial, o absoluto. O ser humano é igualmente um ser em relação, um ser de um mundo já feito e ao mesmo tempo sempre por fazer. Assim, não há liberdade sem processo de libertação (BOFF, 1986). A liberdade humana só é liberdade efetiva enquanto liberdade no mundo da natureza e da sociabilidade, ou seja, quando ela se faz fundamento que alicerça a relação com a natureza e a vida comum dos sujeitos
entre si.

Se a liberdade num primeiro momento é transcendência, autonomia do eu sobre toda a fatalidade, e se num segundo momento é decisão, tomada de posição diante de uma multiplicidade de possibilidades, ela só se PLENIFICA na medida em que se exterioriza, se faz mundo, se autoconfigura como ser efetivo na natureza e na sociedade. A liberdade efetiva é liberdade enquanto construção intersubjetiva de relações, a construção do ser pessoal como um-ser-com-a-alteridade, decisão a respeito da configuração específica desse ser-com. Assim, o que está em jogo no processo de libertação e o que torna possível a constituição de sujeitos enquanto sujeitos é esse processo de construção de COMUNHÕES como espaço de efetivação da liberdade na contingência dos eventos.

Nem interioridade pura, nem exterioridade pura podem construir a liberdade. Ser humano significa conquistar-se como ser livre e o caminho para chegar lá é cada individualidade compreender-se não como realidade isolada, mas construir um mundo que seja efetivador da liberdade onde cada um existe para si enquanto existe com o outro, pelo outro e para o outro (OLIVEIRA, 2008).

É na vida em comum que se pode exercer a possibilidade de outras configurações de mundo, a partir do diálogo e do respeito ao outro. A garantia do respeito ao outro deve ocupar lugar central em uma sociedade democrática e republicana, a qualquer outro, com sua inclusão integral na vida da sociedade. E isso é atribuição não somente do Estado, mas da Sociedade como um todo, incluindo-se logicamente o Mercado, numa dinâmica trialógica entre essas três esferas.

Como lembra Tocqueville (2005), não há grandes povos sem a ideia dos direitos humanos; não há grandes homens sem respeito aos direitos humanos: pode-se dizer que não há sociedade, pois o que é uma reunião de seres racionais e inteligentes cujos únicos vínculos são o egoísmo e a competição?

Então, somente quando palavra e ação não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades, tem-se uma verdadeira realização política, na liberdade.

Segundo Hannah Arendt (1993), o milagre da liberdade está inserido nesse poder de iniciar. O termo grego archein significa iniciar e comandar, isto é, ser livre; o termo latino agere significa por em movimento, isto é, desencadear um processo. Se o sentido da política é a liberdade, então isso significa que nós, nesse espaço, e em nenhum outro, temos de fato o direito de ter expectativa de “milagres”. Não porque se acredite (religiosamente) em milagres, mas porque os humanos, enquanto puderem agir, são aptos a realizar o improvável e o imprevisível, e realizam-no continuamente, quer saibam disso, quer não.

Somente dessa forma, conforme a autora, a política pode dar sentido à existência coletiva na terra. Na convivência ética entre seres livres e iguais, as dimensões deontológica e teleológica da ação política precisam desenvolver um diálogo dinâmico e sintonizado entre si na busca da construção do bem humano coletivo. É um percurso extenuante. Ou como diria Celso Furtado, “um longo amanhecer”.

Para o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, a possibilidade é o movimento do mundo. Ele divide em três momentos o caminhar da possibilidade: 1) o momento da carência (onde emergem as manifestações de algo que falta); 2) o momento da tendência (onde começam a clarificar processos e sentidos); 3) o momento da latência (onde se apontam para os caminhos a serem trilhados no processo).

A carência é o domínio do Não. A tendência é a compreensão do Ainda-Não, ou seja, a compreensão no presente de uma possibilidade incerta, mas nunca neutra. E a latência é o domínio do Nada ou do Tudo, uma vez que essa possibilidade tanto pode redundar em frustração como em esperança. Por isso Boaventura aponta para a necessidade de conhecer bem as condições de possibilidade da esperança, buscando-se definir bem os princípios de ação que promovam a realização dessas condições.

Um elemento importante destacado pelo autor trata da qualidade da dimensão subjetiva, que leve adiante essa possibilidade, alicerçada numa consciência cosmopolita, que não desperdice as experiências que indivíduos e grupos realizam pelos quatro cantos da Terra, em busca de encontrarem respostas às suas insatisfações. É um movimento que vai ao encontro do conhecimento das experiências sociais quanto das expectativas sociais. Muitos dos movimentos emancipatórios das últimas décadas começaram por experiências sociais locais
travadas contra a exclusão social.

Neste sentido, Bovantura propõe uma ecologia dos reconhecimentos, que vá numa direção contrária às lógicas atuais de desqualificação de práticas experienciais de emancipação social que resultam imediatamente na desqualificação dos agentes. Para ele é preciso alargar o círculo das reciprocidades, criando novas exigências de inteligibilidade recíproca, uma vez que ocorrem uma multiplicidade de formas de resistência e de luta que mobilizam diferentes atores coletivos, vocabulários, práticas e recursos nem sempre inteligíveis entre si, o que pode colocar sérias dificuldades para o diálogo político.

Em cada momento, há sempre um horizonte limitado de possibilidades e por isso, diz Boaventura, é importante não desperdiçar a oportunidade única de uma transformação específica que o presente oferece. Carpe Diem.

sábado, 2 de julho de 2011

CAMINHOS PARA O DESENVOLVIMENTO HUMANO



Alexandre Aragão



Retomando nosso diálogo, primeiramente eu gostaria de retornar àquele pequeno exemplo concreto, que no meu modesto entender não parece ser tão pequeno assim como você enfatizou anteriormente ao dizer “põe pequeno nisso”.

Se pensarmos que uma microempresa cearense (portanto, não estamos falando de multinacional) conseguiu, em apenas dois anos, sem recursos advindos de fontes de financiamento externo, aumentar a venda de produtos populares por ela comercializados em 200% - de 1.000 unidades para 3.000 - não me parece que seja algo que deva ser desprezado. Sobretudo porque estamos falando de consumo de massa e de geração de renda, e não de consumo de bens de luxo, como ocorria nos modelos de desenvolvimento pensados em épocas anteriores no Brasil.

Penso que, para um pesquisador sensível, esse dado não pode ser visto, aprioristicamente, como um fato isolado: nessa “fumaça” pode, quem sabe, haver “outros fogos” e “outras razões” desconhecidas que levaram a produzir essa centelha de crescimento.

Quais seriam essas razões? O que significaria, por exemplo, para a indústria ter de aumentar, numa mesma proporção de 200%, a produção de seus itens? Quantas vagas de empregos diretos teriam que ser preenchidas para que essa alavancagem ocorresse? São perguntas que podem surgir, na medida em que se vá estabelecendo uma relação entre os dados microeconômicos encontrados com os dados macroeconômicos. E, se não estou enganado, parece que o problema atual da inflação tem haver com algo semelhante, com a velocidade do crescimento econômico no Brasil nos últimos anos.

Gostaria de relembrar alguns aspectos do pensamento de AmartyaSen, de quem não sou especialista como você o é, mas para aprofundarmos o debate, arrisco-me a percorrer brevemente alguns pontos do seu pensamento onde vamos encontrar uma forte reflexão sobre a importância da democracia nas sociedadescontemporâneas, que é o ponto central de minha reflexão.

Quando perguntaram a Sen qual tinha sido o acontecimento mais importante do século XX, ele respondeu sem hesitação: a emergência da democracia . Para ele, qualquer país se prepara para a democracia através do exercício democrático, o principal caminho pelo qual as sociedades podem alcançar um progresso econômico esocial. Portanto, trata-se de um percurso a ser percorrido. Nada de situações idealizadas como pensavam alguns intelectuais clássicos dos séculos passados.

O primeiro dos papéis da democracia, segundo o autor, é sua importância intrínseca:a garantia de manifestação dos sujeitos como a capacidade básica do ser humano em participar social e politicamente da vida em comum.

Em segundo lugar, ele destaca o valor instrumental da democracia: na medida em que são ouvidas, as pessoas buscam a satisfação de suas necessidades. Desse modo, a democracia é vista como um catalisador do desenvolvimento, favorecendo o atendimento das demandas sociais.

Por último, Sen sinaliza para o papel construtivo da democracia na definição dos problemas das sociedades, uma vez que as necessidades de uma dada sociedade não são um dado absoluto, mas uma construção baseada na noção do que pode sermelhorado. Quando um problema parece insolúvel, o livre fluxo de informações propiciado por uma democracia autêntica garante a construção de melhores conceitos, consequentemente uma visão mais ampla da sociedade, de seus problemas e da busca de suas soluções.

Assim, a ação livre das pessoas é essencial para a superação dos problemas, sendo a superação dos problemas entendida como o exercício central do desenvolvimento. Portanto, nessa visão, o desenvolvimento consiste em percorrer um caminho que remova os vários tipos de restrições que deixam às pessoas pouca escolha e pouca oportunidade para exercerem sua ação racional.


Logo, o ponto de partida da abordagem seniana reside na identificação da liberdade como o principal objeto do desenvolvimento: liberdade econômica, liberdade política, liberdades sociais e culturais.


Então aqui entra a figura do Mercado, como uma das dimensões civilizadoras da humanidade. Não a única, logicamente. A liberdade de trocas e de transações é em si mesma parte das liberdades básicas a que as pessoas atribuem valor.


Podemos, nesse caso, voltar a Marx, que em sua critica da economia politica ressaltava duas condições básicas para a realização das trocas no mercado: a igualdade e a liberdade dos agentes. Segundo este autor, o grande acontecimento da históriacontemporânea de sua época havia sido a Guerra Civil estadunidense, na qual os homens lutavam para ter a liberdade de espaço no mercado de trabalho contra o sistema econômico da escravatura vigente em algumas colônias.


Então, mediante o acima exposto, surge a pergunta: estaria ou não o Programa Bolsa Família contribuindo para a ampliação do exercício da liberdade das pessoas? De que forma? Em que níveis e diversificações?


Importante lembrar que o PBF não é o único programa social e econômico desenvolvido pelo Estado brasileiro nos últimos 9 anos. Existe um conjunto de programas que resultam da visão estratégica do Governo federal, no sentido de atingir um desenvolvimento na perspectiva que aqui foi apresentada.

Afinal, como encontramos em Sen, as liberdades instrumentais – liberdades políticas, disponibilidades econômicas, oportunidades sociais, proteção da segurança e garantias de transparência - ligam-se umas as outras com a finalidade de atingir a totalidade daliberdade humana.


Assim, acho que esse aquecimento da atividade econômica das pessoas não esteja acontecendo apenas naquela lojinha. É preciso ler outros indicadores e fazer uma leitura mais articulada dos dados, buscando compreender uma verdade sempre mais profunda.


E aqui gostaria de abrir um espaço para uma reflexão em torno do outro – pessoa e grupos – e de sua importância para a construção do caminho democrático apresentado por Amartya Sen.


O outro – não apenas o outro igual, mas o outro diferente – é imprescindível para a realização da democracia. A democracia é essencialmente um sistema político que necessita de um amplo relacionamento dialógico entre pessoas e entre instituições. O ser humano está integralmente e continuamente olhando para si e olhando para o outro. Ele não pode prescindir do outro para poder transformar-se a si mesmo e transformar o espaço social ao seu redor.


Essa universalidade da relação eu-e-o-outro não exclui nenhuma categoria de pessoas, afinal todos possuem o mesmo gérmen humano.


A sociedade complexa da alta modernidade, como definem alguns autores, apresenta uma situação social que não é nova, mas que de um certo modo está carregada de nova complexidade, devido à presença de estruturas e instituições que estão presentes como mediadoras da relação entre as pessoas.


Como então, compreender a importância das instituições na vida relacional?

A instituição – política, econômica, social e cultural – é o terceiro elemento que se insere na relação face-a-face, criando um novo tipo de relacionamento humano, agora não mais direto, onde do outro não conhecemos nem a face nem o nome. Entretanto, o fato desse anonimato não significa que o outro perca sua dignidade enquanto pessoa. Cada um, portanto, que é atingido pela ação institucional, continua sendo uma pessoa distinta que somente posso alcançá-la mediante os canais institucionais.


As instituições, assim entendidas, podem ser instrumentos que ajudam a alargar, ampliar e estender a rede de relações humanas. Naturalmente isso não se dá de forma automática e estável, mas envolve sempre a vontade, inteligência, conhecimento e escolhas dos agentes com nelas engajados e das pessoas em geral. As instituições não se renovam por si mesmas; dependem da renovação das pessoas e de seu compromisso em incidir sobre as instituições, continuamente, para modificá-las, aprimorá-las.


Portanto, concebo que a crítica às instituições e às políticas que vêm sendo adotadas no Brasil precisa fazer uma leitura ampla e objetiva, buscando compreender as motivações, estratégias, realizações e contradições. Seguindo o pensamento de Boff, deve ser uma crítica substantiva e não adjetiva, tendo presente que o outro é sempre um-outro-de- mim, sem o qual não posso construir o espaço social. Penso que, dessa forma, poderá contribuir bastante para o desenvolvimento de nossa liberdade e o aprimoramento de nossa democracia.


É uma caminhada de aprendizagem continua. Não apenas de crítica, mas conjuntamente de autocrítica.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

O Estado da Palestina já!


EMIR MOURAD


O fato de Israel ter vencido guerras não o faz regulador de normas internacionais nem exime o país das infrações cometidas perante as leis



A questão fundamental para a solução do conflito entre palestinos e israelenses é reconhecer que os países-membros da ONU possuem direitos e deveres que regulam a convivência civilizada entre nações, Estados, governos e povos.
Israel, dentre diversas resoluções do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral, acatou, até hoje, uma só resolução: a que aceitou Israel como membro da ONU!
A Palestina existe de fato antes de Israel ser criado em maio de 1948: uma cultura milenar, um povo organizado na cidade e no campo, em maioria árabe muçulmana e cristã, com minoria judaica, todos pertencentes à sociedade palestina, com instituições sociais, industriais, educacionais, faltando só o reconhecimento de direito para estabelecer seu Estado independente. O estabelecimento do Estado da Palestina é questão de direito! 
Vez ou outra nos deparamos com opiniões "desinformadas" sobre a demografia da época do mandato britânico sobre a Palestina, tais como "o território que a ONU destinou aos judeus já continha maciça maioria judaica".
Nos dados da ONU consta que, em dez dos 16 subdistritos administrativos, a população palestina perfazia mais de 82% do total da população. A Comissão de Inquérito Britânico-Americana, em 1945 e 1946, apresentou relatório com os dados de 1,269 milhão (67,6%) de árabes palestinos e 608 mil judeus residentes dentro das fronteiras do mandato da Palestina.
Sobre as guerras ocorridas em 1948, 1967 e 1973, todas as resoluções da ONU se referem às ações da "potência ocupante", Israel, e à ilegalidade de ocupar, colonizar e anexar territórios pela força militar.
Além da responsabilidade histórica de Israel pela expulsão dos refugiados palestinos.
Quanto aos judeus que foram expulsos de países árabes, eles obtiveram a cidadania israelense e deixaram de ostentar o direito de reivindicar qualquer status de refugiados, diferentemente dos refugiados palestinos, que hoje somam quase 5 milhões e são reconhecidos como refugiados segundo o estatuto da ONU e o direito internacional.
O conflito tem proporções internacionais, já que foi criado pela própria ONU e pelas intervenções de várias potências, em decorrência de seus interesses econômicos na região do Oriente Médio.
O fato de Israel ter vencido guerras não o faz regulador de normas e leis internacionais nem o exime de infrações cometidas perante a lei! 
Em julho de 2004, a Corte Internacional de Justiça proferiu uma sentença, por 14 votos a um, declarando ilegal e pedindo a demolição do muro que Israel construiu nos territórios ocupados.
A representante do Brasil na ONU, embaixadora Maria Viotti, em seu relato sobre a questão palestina, declarou, em 21 de abril de 2011: "As atividades de assentamento na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental são ilegais e um obstáculo à paz".
Os palestinos, em setembro próximo, vão pedir que o Estado da Palestina seja reconhecido como membro das Nações Unidas, tal como Israel o foi em 1949. Se Israel continuar negando esse direito aos palestinos, estará negando a razão de sua própria existência!


EMIR MOURAD, engenheiro civil, é diretor da Federação Árabe Palestina do Brasil.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


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TENDÊNCIAS/DEBATES
Relevante e urgente 


RANDOLFE RODRIGUES

Devemos evitar que o sistema de tripartição de Poderes se submeta ao constrangimento de decidir sobre fatos já consumados pelo Executivo


Nossa Constituição é sem dúvida o texto mais avançado de nossa história: ela restaurou os direitos civis, o equilíbrio e a independência entre os Poderes, ampliando os espaços institucionais de participação popular e introduziu no Brasil as bases para a construção de um Estado de bem-estar.
Entretanto, também instituiu, em seu artigo 62, a figura das medidas provisórias, inspirada nos "decreti-legge" da Constituição italiana de 1947, em que se estabelecia a sua adoção em casos extraordinários de necessidade e urgência.
Destaque-se que, na Itália, o sistema de governo é o parlamentar, que prevê que a não aprovação das medidas provisórias poderia acarretar a responsabilização política do governo. No Brasil, vemos instaurada uma verdadeira "ditadura do Executivo".
Em 2001, o Congresso aprovou a emenda constitucional nº 32, que buscava disciplinar as sucessivas reedições. Até tal data, já tinham sido editadas e reeditadas 6.130 medidas provisórias, chegando ao absurdo de algumas delas levarem anos sem apreciação, convertendo-se em verdadeiros decretos-leis.
A emenda constitucional nº 32/ 2001 não foi suficiente para conter o ímpeto legiferante do Executivo.
De 2001 até 2010 foram editadas mais de 800 medidas provisórias.
Os governos de FHC e Lula pecaram na observância dos critérios constitucionais de relevância e urgência.
Os vícios e deformações das medidas provisórias se avolumam: ausência de pertinência temática; utilização para abertura de crédito extraordinário, que só poderia ser admitido para atender a despesas imprevisíveis e urgentes decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública.
Junte-se a isso o desrespeito à função do Senado como Casa revisora do processo legislativo, em função do pouco tempo para tramitação na Casa.
Esses vícios são derivados não somente do abuso do Executivo, acostumado a legislar pelo método mais fácil, mas também de um Legislativo submisso, habituado à passividade e pouco empenhado em defender suas republicanas prerrogativas; ou seja, o Parlamento é enfraquecido porque esse enfraquecimento é permitido pelos parlamentares.
No início desta legislatura foi apresentada a proposta de emenda constitucional nº 11/ 2011, que altera a tramitação das medidas provisórias. O senador Aécio Neves apresentou substitutivo, aprovado na CCJ, mantendo o atual prazo de 120 dias para apreciação, distribuindo-as de modo equânime entre a Câmara e o Senado, recuperando o papel deste como Casa revisora.
Insere ainda uma Comissão Mista Permanente, composta por 12 senadores e 12 deputados, que terá o prazo de dez dias para o juízo de admissibilidade, recuperando assim a prerrogativa constitucional do Congresso na apreciação da relevância e urgência e evitando que o nosso sistema de tripartição de Poderes tenha que se submeter ao constrangimento de decidir sobre fatos já consumados pelo Executivo.
A aprovação da PEC nº 11/2011 é inadiável e de fato relevante e urgente para que seja restabelecido o nosso sistema de separação de Poderes, assim como restabelecido o poder do Congresso brasileiro, que deixará de ser um simples cartório das decisões vindas do Executivo.


RANDOLFE RODRIGUES é senador pelo PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) do Amapá.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

segunda-feira, 13 de junho de 2011

A LUTA PELA CIDADANIA

Alexandre Aragão


A luta pela cidadania se dá no dia a dia, no assumir a própria história e com essa consciência ir-se em busca da efetivação de liberdades e direitos de igualdade. A cidadania e as liberdades substantivas não caem do céu.

Antes nós fomos a nação dos Navios Negreiros, que tão bem canta Castro Alves, daquele olhar preconceituoso, por parte dos brancos europeus que aqui chegaram, sobre a não existência da alma espiritual nos humanos negros e indígenas que fundaram nossa nação.
Hoje somos uma nação em processo de elaboração de sua democracia, que desenvolveu o Programa Bolsa Família como um resultado da leitura de nossa história, pela constatação da necessidade absoluta de uma política redistributiva de renda, que começou a ser implantada pela chegada ao poder de um grupamento vindo das bases sindicais de nosso país. Isso foi resultado da luta política possível e contínua.

Logicamente há várias formas de percebermos um copo com água até a metade. Alguns o olharão como quase vazio; outros, ao contrário o olharão como quase cheio. Para que a definição do olhar se aproxime o mais possível da verdade sobre o copo, é preciso, por exemplo, saber se o movimento foi de esvaziamento ou de enchimento. Com essa informação, poder-se-á compreender melhor o movimento histórico que incidiu sobre aquele copo com água até a metade.

O recente comunicado do IPEA, de número 92, em 19 de maio, debruça-se sobre a temática da equidade fiscal no Brasil, com seus impactos distributivos da tributação e do gasto social.

Como se sabe, existem pelo menos duas modalidades de impostos pagos pelos cidadãos brasileiros: impostos diretos, que recaem sobre a renda, e impostos indiretos, que recaem sobre o consumo.

Segundo o estudo, o sistema tributário brasileiro exerce um peso excessivo sobre as camadas mais pobres e intermediárias de renda, que se deve especialmente dos impostos indiretos sobre o consumo (ICMS, por exemplo), pois tanto o rico como o pobre pagam as mesmas alíquotas de impostos, caracterizando a regressividade tributária, contrariamente o que ocorre com o imposto sobre a renda que é progressivo: quem tem mais paga mais.

Afirma o estudo que nos 10% mais pobres, a regressividade da carga tributária atinge cerca de 30% de sua renda total, enquanto nos 10% mais ricos atinge somente 12% de sua renda total. Que injustiça, não?

A partir de 2003, começa a ocorrer um fenômeno novo na política distributiva do País.

O Gasto Social Progressivo procurou corrigir esse desequilíbrio regressivo, não mediante uma reforma tributária (que politicamente é muito difícil de acontecer no momento, dada a correlação de forças políticas), mas a partir da implantação de políticas públicas de transferência de renda, como também com o direcionamento dos gastos com saúde e educação para as camadas mais populares, por exemplo.

Os programas de transferências de renda apresentam-se como necessários também por outra razão. Pelo fato de os auxílios e seguros-desemprego serem benefícios que se efetivam em razão da inserção formal no mercado de trabalho. Como as pessoas mais pobres de nossa população convivem com precárias relações trabalhistas, seja pela informalidade, pela exploração patronal ou pelo desemprego (que na época FHC, anterior a 2003, atingiu taxas históricas), acarretava para elas uma ausência de proteção social.
O Programa Bolsa Família atinge atualmente cerca de 13 milhões de famílias. Segundo o estudo do IPEA, 80% dos recursos transferidos por esse programa são apropriados pelos 40% mais pobres da população do nosso país, cuja renda monetária familiar mensal per capita é de R$ 152,08, em valores de janeiro de 2009 (época em que se concluiu a pesquisa). Com relação aos 10% mais pobres, o PBF atinge cerca de 20% de suas rendas monetárias.

Portanto, é através do perfil redistributivo do gasto social brasileiro, a partir de 2003, que se está podendo contrabalancear a regressividade da tributação indireta nas camadas mais pobres e intermediárias de renda, mediante a destinação de recursos maiores das políticas sociais para estas populações.

Em 2009, conforme o estudo, observou-se que a transferência média de recursos públicos às famílias foi mais que proporcional à incidência tributária média, demonstrando a pró-atividade das políticas sociais, que não apenas buscam compensar a injustiça dos impostos no Brasil, mas que transformaram o gasto social em importante equalizador da distribuição dos recursos.

Essa perspectiva introduz novos olhares sobre como a reorganização possível do Estado (e não do Mercado) em operar políticas públicas é capaz de enfrentar obstáculos, antes dados como absolutos, no rumo à consolidação dos direitos sociais e constitucionais.

Logicamente esse debate nós não vamos encontrar na mídia dominante, que procura tratar tudo com a máxima superficialidade e parcialidade. Mas cabe a nós, que nos pretendemos olhar além da superfície, irmos em busca dessas leituras.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

CRISE DE RESPONSABILIDADE

Alexandre Aragão
A crise financeira no centro capitalismo mundial, em 2008; as manifestações de rua por democracia, cidadania, distribuição de renda e em defesa do trabalho na Europa; o tsunami, com o desastre nuclear do Japão; o massacre de Realengo, no qual crianças indefesas de uma escola pública do Rio de Janeiro foram barbaramente assassinadas enquanto assistiam às aulas, são acontecimentos que ocorreram no Ocidente, numa sequência temporal muito próxima, demarcando o fim da primeira e o início da segunda década do século XXI, requerendo de todos nós uma atenção mais sensível e comprometida, num debate intenso e consequente, na busca de procurar sentir as motivações profundas promotoras de tais eventos, com o objetivo de produzirmos pensamentos e atitudes capazes de responder ao que tais fenômenos estão a nos reclamar enquanto civilização contemporânea.

Existiria alguma relação entre aqueles acontecimentos? No tempo moderno, a Academia surge como locus da produção do pensamento científico, templo da “nova religião”, apresentando-se assim como um espaço propício para tal reflexão. Entretanto, segundo o teólogo Leonardo Boff (2011), a Academia possui uma grande dívida social com os marginalizados do planeta, pois, em boa parte, as universidades representam macroaparelhos de reprodução da sociedade discricionária e fábricas para o funcionamento do sistema imperante, não obstante ser também um laboratório do pensamento contestatório e libertário. Para o autor, “ainda não houve um encontro profundo entre a universidade e a população que possibilitasse uma aliança entre a inteligência acadêmica e a experiência da miséria popular: são mundos que caminham paralelos”.

A “sociedade discricionária”, da qual fala Boff, é a nossa sociedade moderna. Um tipo de sociedade que substituiu a ordem comunitária tradicional, baseada numa economia agrícola e pastoril, pela nova ordem da produção tecnológica industrial, cujo objetivo é a maximização da eficiência e dos lucros privados.

A palavra de ordem da modernidade é o progresso, mediante a manipulação da natureza pelos instrumentos fabricados pelos seres humanos. A modernidade pensa a si mesma como um movimento progressivo. A finalidade do progresso moderno é aumentar a capacidade de fazer tudo aquilo o que os seres humanos possam querer que se faça (Bauman, 1997). Com isso, a modernidade determina uma inversão na lógica da
produção social: os meios são liberados dos fins. A liberação dos meios é o coração da modernidade, que condena o passado e a tradição ao “lixo” da história.

Primeiramente houve a substituição das forças naturais de produção – os músculos humanos e dos animais – pela manipulação das máquinas; em seguida, a segunda mudança se dá com a substituição dos cérebros humanos pela manipulação da inteligência artificial.

É uma verdadeira revolução cultural que afetou em cheio o espaço social, modificando-o completamente na medida em que dissolveu os vínculos dos grupos naturais, rompendo com as relações e proteções que as pessoas encontravam nesses grupos, produzindo a fragmentação do composto social em indivíduos isolados, desligados, movendo-se aleatoriamente sem os vínculos anteriores: a atomização humana em busca “inconsciente” de novas constelações relacionais (Bauman, ibid.).
 
Como já afirmava Marx (1982), na época em que as relações sociais alcançaram o mais alto grau de desenvolvimento, o indivíduo é isolado dos seus laços naturais, onde as diversas formas do conjunto social passaram a apresentar-se a ele como simples meio de realizar seus fins privados. Não mais uma necessidade interior à sua humanidade, mas exterior. Um isolamento que se dá dentro da sociedade.
 
Ora, indivíduos desvinculados de seus laços, “individualmente livres”,são mais fáceis de manipulação, palavra de ordem da modernidade. Tendo sido destacados de seus grupos naturais – que os fazia sentirem-se mais inteiros – os indivíduos atomizados foram facilmente acessíveis para as novas funções que lhes foram imputadas. Afinal, era preciso tornar os humanos aptos e dóceis para  tratamento tecnológico moderno, cuja centralidade é a produção pela produção, o progresso pelo progresso. Os humanos tornaram-se assim verdadeiros objetos tecnológicos: foram separados, analisados e depois sintetizados de várias outras maneiras.
 
Como lembra Weber (1985), o mundo enquanto invocado pela tecnologia é um mundo desencantado, um mundo sem sentido próprio, porque sem finalidade, sem intenção, sem propósito, sem destino. Louis Dumont (1986) assinala que a modernidade destitui o mundo de valores e cria o mundo das coisas, dos objetos, um mundo sem humanidade, no qual o ser humano, agora se considerando um deus soberano (como no caso do
assassino de Realengo), pode impor sua vontade pela ação tecnológica. Se alguma coisa pode ser feita pela ação tecnológica, por exemplo, uma usina nuclear próxima ao mar, como no Japão ou em Angra dos Reis, não existe nenhuma autoridade que tenha o direito de proibir seu acontecimento.
 
Nesse mundo, necessidades naturais são abominações. Por outro lado, os desejos, bastando estar apoiados em tecnologia – em recursos técnicos – tornam-se “direitos humanos” que nada pode questionar, nem se pode argumentar para eliminá-los. A tecnologia passa a ser uma crença, que não permite a descrição do mundo a não ser de forma tecnológica. Ela torna-se a sua própria legitimação. É um novo fundamentalismo. Este consiste na subordinação estrita de interações sociais muito distintas a um princípio único e monolítico de ordenação social, aplicado em última instância por um corpo exclusivo de detentores do poder.
 
Para a modernidade tecnológica, é proibido proibir. O mundo moderno da tecnologia é um mundo resistente à fixação, fluído, explosivo de oportunidades, sejam elas quais forem. Importante são os meios capazes de
produzir. Os estadunidenses podiam fabricar a bomba atômica, então a fabricaram; em seguida, podiam lançá-la em Hiroshima e Nagasaky, então a lançaram. Essa é a lógica da tecnologia, esse é o valor que dá suporte à civilização moderna: o poder sem fim. Um poder sem fim assim cria uma cultura-do-sem-limite-do-eu, afinal nada pode opor-se a ação tecnológica. Os humanos internalizam essa cultura-do-sem-limite-do-eu levando-os à exacerbação de comportamentos, guiados pela compulsão do consumo e pela
centralização dos indivíduos em si mesmos. Em outras palavras, pensar tecnologicamente significa pensar a partir de uma visão fragmentada, ego-ista, numa sucessão de resolução de problemas, sem vínculos relacionais, cada um exigindo técnicas separadas e corpos separados de conhecimento especializado. 
 
 Se o tratamento para um problema cardíaco pode afetar algum distúrbio hepático, deixa de ser uma questão do cardiologista, que se isenta de total responsabilidade, passando o cliente para outro especialista. A realidade é pensada não como um todo, mas como uma soma de partes, como divisão, como razão, como separação. Criou-se uma sociedade apartada, capaz de construir arranha-céus, mas incapaz de matar a fome de milhares que crianças que morrem anualmente pela desnutrição ou inanição. Na cultura-do-semlimite- do-eu não há o esforço para se perceber a ligação entre riqueza e pobreza, o vínculo entre solidão e violência, a interpenetração entre excessos e carências.

A cultura-sem-limite-do-eu moderno recusa-se a enxergar os sofrimentos humanos concretos que batem diariamente em sua fortaleza. Constrói carros blindados à prova das balas da realidade, continua alheando-se
da dor que habita o planeta. O individualismo moderno quer apenas a maximização da felicidade pessoal, independente das consequências que possa causar a outrem. É em cima dessa antropologia individualista que se constrói o conhecimento no mundo moderno. Mas qual sistema dá sustentação a essa cultura-sem-limite-do-eu? O sistema capitalista-sem-fim.

É um sistema que privatiza os ganhos e socializa as perdas, como vimos nos exemplos com os quais iniciamos nosso artigo. Em Fukushima, a tragédia nuclear produziu 25 mil mortos, pessoas que não foram consultadas, nem suas famílias, sobre a implantação daquela arma tecnológica em sua região. Por  outro lado, nos EUA, os criadores das notas promissórias “garantidoras” das hipotecas não sofreram as consequências de suas irresponsabilidades dos empréstimos predatórios, que jogaram milhares de famílias estadunidenses na miséria e boa parte do mundo ocidental na recessão, porque “os bancos eram grandes demais para falir”.

Atualmente estamos vendo essa cultura-sem-limite-do-eu romper a mais nova fronteira: o corpo humano. A investigação do DNA, com a rápida ampliação da capacidade de tecnologias de manipulação da vida biológica, significa, em termos culturais, a transformação do corpo na derradeira raiz, a partir da qual se abrem as portas para a engenharia genética e as tecnologias que permitem a intervenção nos processos de reprodução e de desenvolvimento dos organismos vivos e a sua modificação.

Tudo isto é acompanhado por uma enorme indefinição, um verdadeiro rol de “notas promissórias” em branco assinadas pela humanidade, sobre os reais benefícios para as pessoas comuns, uma vez que a penetração do capital privado no desenvolvimento tecnológico da ciência manipuladora da vida e de sua capacidade de “controlar” o destino humano levará a transformar a vida humana em mercadoria, além de colocar esse tipo de conhecimento como uma das formas mais importantes de capital (Santos, 2010).

A cultura-do-sem-limite-do-eu não se interroga em relação sobre o pouco conhecimento que possui em compreender a complexidade dos processos biológicos humanos e as consequências que essas manipulações podem ter sobre as pessoas, comunidades e o meio ambiente, gerando um hiato perigoso entre a crescente capacidade de intervenção e transformação genética mediante a inovação tecnológica e a reduzida compreensão dos processos que organizam a vida.

Além disso, sendo de curto prazo o tempo do capital financeiro, requerendo retornos imediatos – e muitas vezes não éticos, como se viu na recente crise de 2008 -, principalmente no cenário neoliberal de feroz competividade do mercado global, várias interrogações, de caráter ético, palpitam em relação ao avanço dessa nova fronteira financiada pelo capital privado, preocupações que vão desde a um possível regresso do eugenismo, como com preocupações com as consequências sanitárias, ambientais, sociais e econômicas destas práticas.

Para superar esse impasse, parece ser necessário à humanidade ir em busca de novas palavras que substituam progresso, domínio, separação, manipulação, reorientando o novo eixo de caminhada da ação humana em meio ao mundo.

Novas palavras que sejam capazes de imaginar uma nova configuração da estrutura das relações econômicas, sociais e políticas, as quais possam garantir uma maior e mais justa distribuição dos bens produzidos pela humanidade em seu conjunto, além de viabilizar o desenvolvimento da vida de forma sustentável e prudente, onde o desenvolvimento tecnológico seja submetido a amplos processos de participação das populações a serem afetadas em suas possíveis aplicações, para que se possam adotar politicas que não dependam exclusivamente da fome de retorno e lucro imediato do capital privado, mas que sejam resultado de um debate amplo, contínuo e intenso entre os diversos setores e grupos que compõem a humanidade em seu conjunto.
 
Porque a Ciência é um bem social, uma vez que cada descoberta é financiada indiretamente pelo trabalho das pessoas comuns. Portanto deve servir a todos e estar ao alcance de todos.
 
Falta à Ciência fortalecer seu componente humanista e democrático, comprometida emocionalmente com as pessoas, capaz de deixar de ser um instrumento de crescimento do patrimônio de uns poucos, para ser uma
ferramenta catalisadora para a felicidade da humanidade.
 
Falta à Ciência fortalecer o seu componente ético. A ética não será digna desse nome se ela não abraçar o futuro. É preciso ter o entendimento do futuro, a partir das lições do presente, e incluir esse entendimento na sua ordem do dia. Como o futuro não está determinado pelo determinismo mecanicista concebido pelos modernos, mas por uma complexidade que requer criatividade e participação dos diversos sujeitos envolvidos, assim a nova racionalidade deve falar mais de possibilidades do que de certezas. Falta à Ciência fortalecer seu componente relacional. A individualidade, emergente na modernidade, precisa ser compreendida como sendo componente do todo: o sujeito que emerge do todo continua fazendo parte do
todo.
 
Falta à Ciência articular unidade e diversidade. Como lembra Prigogine (2000), a Seta do Tempo é um elemento fundamental de unidade e diversidade. Inicialmente ela é um elemento comum ao nosso universo; por exemplo, cada um de nós envelhece do mesmo jeito: o Sol envelhece da mesma forma que cada astro no universo. O tempo talvez seja o que caracteriza essa estranha viagem na qual estamos envolvidos todos nós. Por outro lado, ele diferencia as coisas. Não há evolução em uma única direção, existem evoluções múltiplas. A realidade é somente uma das realizações do possível.

Importante lembrar que o ser humano tem duas grandes experiências. A primeira trata da repetição. Vemos o Sol aparecer todos os dias, vemos o movimento da Lua, os movimentos das marés, e essa ideia de repetição abriu às portas às leis clássicas da Ciência. Todavia, também temos uma segunda experiência: a criatividade, a experiência do novo, a experiência artística, a experiência literária. Portanto, fazemos parte de dois grandes projetos: o projeto da inteligibilidade da vida e o projeto da responsabilidade com o Outro. Esses projetos estão coligados. Assim, é preciso superar a fragmentação moderna e ver-nos incluídos e relacionados numa mesma viagem pelo tempo-espaço.
 
O determinismo era uma tentação para grandes filósofos e para grandes escritores, como Renè Descartes, para quem era necessário criar uma certeza laica que se opusesse a incerteza religiosa, que conduzia às guerras de religião, ao assassinato, ao sangue. Porém essa certeza moderna também obrigava a estabelecer o dualismo entre matéria e a vida. Mas a condição humana é a condição temporal. Dá-se no tempo-espaço e com o tempo-espaço. Essa condição não é propriedade de alguns poucos, pertence a todos os seres humanos. Como lembra Walter Benjamin, “a essência de alguma coisa aparece de verdade quando esta se encontra ameaçada de desaparecer”. Quem sabe pelas ameaças que se vêm manifestando repetidamente, é chegada a hora de pensarmos e agirmos seriamente para tornar real uma nova possibilidade da vida na Terra, que garanta a sustentabilidade e a felicidade para todos nós.