Josênio Parente
As mais significativas produções das Ciências Sociais do século XX tratavam da construção de um Brasil moderno. Havia um projeto de Brasil capitalista e liberal-democrático no seio das elites intelectuais brasileiras. Mesmo os seguidores da segunda e da terceira Internacional comunistas não escaparam desse sonho.
Getúlio Vargas buscou construir os atores modernos da cena: a burguesia e o proletariado. A reserva de mercado e o corporativismo impresso na CLT foram o ´fome zero´ dessa caminhada. Todos os governos posteriores contribuíram para esse fim: a modernidade brasileira. Mas foi com a redemocratização pós-1964 que se efetiva o liberalismo no Brasil. Jereissati, no Ceará, com a responsabilidade fiscal, antecipa essa arrancada. É o início efetivo, e parece irreversível, da nossa tardia revolução burguesa: um capitalismo auto-sustentável com uma burguesia e um mercado interno fortes.
Cada presidente caminhou de forma decisiva nessa direção. Collor deu o pontapé inicial ao introduzir a competitividade na economia, quebrando o modelo de reserva de mercado. Itamar e FHC introduziram a moeda e a possibilidade de planejar com o plano Real. Estavam formados os fundamentos econômicos e sociais dessa revolução.
Os cidadãos, se sentindo livres e iguais, nesse ambiente de qualidade total via competitividade, não apenas na economia, mas nas relações profissionais, formaram as condições propícias para uma reforma política, um novo pacto civilizatório, devido ao estado de guerra civil no seio da sociedade civil advinda com a nova estruturação da sociedade pelo mercado. Nossa democracia, que na essência foi delegativa, não representa mais os novos atores sociais. Na nova lógica, o personalismo deve também ceder à racionalidade burguesa.
O desafio do governo Lula estava na política a fim de restabelecer o pacto civilizatório de uma sociedade de mercado. Ele aconteceu em três campos, nos costumes políticos, na consolidação da nova cidadania, e nas relações internacionais, trazendo novo padrão de relacionamento.
No plano da moral, o desafio de estabelecer a ética liberal democrática numa sociedade já rendida ao mercado, isto é, trazer a submissão do cidadão ao Estado, foi iniciado no verdadeiro debate político. O debate econômico e social era consensual, mas a ética tradicional, baseada no temor de Deus e na santidade das pessoas, perdia força para orientar as ações individuais. O Estado precisava ocupar esse espaço e punir de forma republicana quem os desafiasse. Patrimonialismo e nepotismo não são pecados numa sociedade tradicional, mas o é numa sociedade de mercado. O momento dos ´aloprados´ e das prisões exemplares da PF foi bastante didático no restabelecimento dessa moral burguesa. E o judiciário representou a expressão dessa nova ética, como os Fariseus em Roma. São os doutores da lei quem as interpreta e representa a vontade geral, a nova ética.
No plano da cidadania, as massas entraram novamente na política pelo consumo sem compreender a esperteza e a ganância dos tradicionais atores do mercado. Era consenso entre os liberais que a entrada das massas pelo sistema educacional garantiria um maior ajustamento entre a política e a sociedade, restabelecendo facilmente a ética. O resultado dessa nova cidadania, contudo, não foi o populismo, como na primeira vez em que as massas chegaram à política, nas décadas de 1950 e 1960, impulsionada pelo êxodo rural urbano, embora não tenha excluído de imediato o personalismo inerente à sociedade tradicional. Esse processo beneficiou o chamado lulismo.
A chegada das massas à política pela transferência de renda iniciada timidamente pelo governo FHC traz um complicador para as tradicionais elites políticas que tinham suas bases no clientelismo tradicional. A inclusão social, entretanto, não é um fenômeno nacional, pois a queda do muro de Berlim mudou o quadro das relações internacionais. O mito do império americano, guardião da liberdade, só se sustentava no cenário de fim de história: capitalismo contra socialismo. O mundo era mais complexo! Buscou-se um novo demônio, o mundo mulçumano no berço do petróleo, mas não durou uma década. A China, sim, a China poderá assumir esse papel de contraponto para o Ocidente decadente? Esse é o novo quadro da ordem mundial.
O Brasil assiste à resolução desse dilema não mais como expectador e encontra aí um espaço para ser um ator global mais efetivo. Com um mercado interno fortalecido e uma economia que atrai investidores globais, o governo Lula priorizou as relações Sul-sul, sem cortar as tradicionais relações da diplomacia brasileira com o Norte, historicamente mais rico. Os pontos polêmicos desse xadrez, como a relação com o Oriente Médio, sobretudo o Irã, e a rápida passagem pela defesa da democracia na América Central, no caso de Honduras, são conseqüências desse novo papel. O governo Lula se reconheceu uma liderança no mundo globalizado e o Brasil, inserido nessa conjugação de forças, se apresenta como emergente numa nova ordem mundial em processo.
O governo Lula termina seus oito anos de mandato batendo recorde de aprovação de governo e de prestígio pessoal. Ele tem um foco na esquerda, isto é, nos valores de igualdade, mas é o momento de consolidar uma revolução liberal democrática. A simbologia do processo é rica: primeiro trabalhador presidente da República e elege a primeira mulher. Está rodeado desses símbolos como o primeiro índio, na Bolívia, e o primeiro negro, nos Estados Unidos. Está inserido, portanto, num processo de transformação num mundo burguês em crise de liderança que busca novo ordenamento global.
Gostei da análise, muito clara e objetiva.
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